Cultura

“Fantasmas do Império”: a sombra do colonialismo no cinema português

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O filme explora o imaginário colonial no cinema português desde o início do século XX. São 100 anos de documentários e ficções analisados e comentados por cineastas portugueses – Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, Manuel Faria de Almeida e Joaquim Lopes Barbosa – que dialogam com os atores Ângelo Torres e Orlando Sérgio ou entre si sobre os mitos, máscaras e ficções característicos do colonialismo português. Fora do mundo artístico, a concretização do filme contou com o contributo de José Manuel Costa, diretor da Cinemateca, e Maria do Carmo Piçarra, investigadora e autora, entre outras publicações, de “Salazar vai ao Cinema”.

No auditório da Biblioteca Municipal Almeida Garrett, uma hora antes da exibição do filme, o JUP questionou a realizadora de “Fantasmas do Império” sobre a importância da intervenção na arte, o papel do cinema enquanto memória coletiva de um povo e a ideia dos portugueses enquanto “bons colonizadores”.

Ariel de Bigault afirmou que quer “tocar as pessoas, provocar emoções”. Admite que a definição de arte é complicada e que “fazer a arte pela arte não existe”, há sempre outras motivações, entre elas a intervenção social, que assume como tangente a este tipo de trabalho. Reconhece a importância dessa dimensão, mas acrescenta: “não faço filmes por isso, faço porque me atrai e acho pertinente”.

Rapidamente esclareceu que este “não é um filme sobre História”, é sobre cinema e de que forma evoluiu o retrato do colonialismo na sétima arte. Existe um pré e pós-II Guerra Mundial, um pré e pós-Salazar e um pré e pós-25 de Abril. Há muitas visões que se misturam e comparam. Os filmes surgem por ordem de época que retratam: por exemplo, Posto Avançado do Progresso, de Hugo Vieira da Silva e Peregrinação, de João Botelho aparecem logo no início apesar de terem sido lançados em 2016 e 2017, respetivamente, por retratarem fases mais iniciais do imperialismo português.

Fotografia: Ar de Filmes

As conversas incidem especialmente sobre o olhar – quem vê, de onde vê, como vê, mas Ariel afirma que, para além disso, gosta de saber “como e porque é que as pessoas fazem os filmes de um ponto de vista intelectual”. Interessam-lhe os planos, as cores e toda a parte técnica que não tem tanto destaque nestas conversas. Os temas foram escolhidos pela realizadora, que teve longas entrevistas com todos os intervenientes, falaram-lhe de si, da sua relação com a temática: como a viveram, onde a viveram, como a relembram.

“No espaço lusófono há uma série de estratégias para organizar a segregação, não existem leis, mas toda a gente vai reproduzindo isso, é geracional.”

A Cinemateca é o elemento agregador do filme, é lá que estão os arquivos que contam a “história comum”, como refere José Manuel Costa, uma história tão portuguesa como de todo e qualquer povo colonizado. Vai mais longe afirmando que todos se devem “apropriar” destas imagens, vê-las, revê-las, interpretá-las. É o mais próximo do ambiente das colónias que hoje conseguimos estar. Claro que os filmes não são, na sua maioria retratos fidedignos. Mesmo os registos da época eram manipulados e censurados pela polícia política se não fossem motores de propaganda.

Fotografia: Ar de Filmes

Entre pontos e contrapontos, a interpretação cabe a cada um. Ariel conclui que, acima de tudo, “Fantasmas do Império” “interroga a relação dos portugueses com a sua história e com os povos colonizados”. Tem vindo a percorrer as rotas da lusofonia e este documentário foi mais um passo neste caminho. O estudo neste campo permitiu-lhe afirmar que “no espaço lusófono há uma série de estratégias para organizar a segregação, não existem leis, mas toda a gente vai reproduzindo isso, é geracional”.

João Botelho confere uma grande importância ao silêncio que se fez depois do 25 de Abril em relação à Guerra Colonial e a todos os acontecimentos que lhe são inerentes. Os portugueses fecharam-se em copas, África tornou-se um assunto tabu. Ainda que Ariel de Bigault não lhe atribua um papel interventivo, este filme abre portas a várias discussões importantes, não entrando em academismos e mantendo-se acessível ao grande público.

Abordar este tema, mesmo nos dias de hoje, continua a ser um ato de coragem. Vê-lo através da lente do cinema, comparando perspetivas atuais e propagandistas gera uma reflexão. Não só acerca do papel da arte, mas também sobre a relação de cada um com o passado e com a memória coletiva do império.

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