Cultura
JUP Baú: Jojo Rabbit, o humor em dizer “Heil Hitler” nove vezes
O ser humano tem a capacidade de se rir de tudo(Quando me refiro a “tudo” estou a particularizar experiências negativas, e com “rir” não estou propriamente a aludir ao ato de chorar de tanto rir, mas sim a ganhar perspetivas um pouco mais otimistas). Dito isto, claro que tal afirmação não poderá ser absolutamente linear, pois há vários componentes a ter em conta. Depende do trauma em questão, se ocorreu há pouco ou muito tempo, se os envolvidos conseguiram lidar com o dito acontecimento ou não, até o próprio sentido de humor de cada pessoa, se o usam como mecanismo de defesa e se sim, com que frequência.
Tudo isto para dizer que cada um de nós, mais tarde ou mais cedo, com mais ou menos nitidez, acaba por conseguir olhar para eventos do passado com um pouco mais de simpatia. É humano, é natural e, acima de tudo, é saudável.
Em 2019, Taika Watiti lançou um filme intitulado “Jojo Rabbit”. Um filme que, a meu ver, enfatiza o que foi previamente dito, que é possível nos rirmos à custa de quem ou o que nos fez mal. Aliás, até devemos acabar por fazer mesmo isso, principalmente quando lidamos com algo tão sério, indigerível e que destruiu a vida de milhões de pessoas. Algo como o nazismo e a segunda guerra mundial. Não porque seja motivo de alegria, mas, precisamente, pelo contrário. Rir não é sinónimo de alegria, rir pode muito bem ser um escudo que usamos para amortecer certas quedas, uma atitude desafiante perante a vida. O filme tenta e alcança mesmo isso, conseguindo humanizar e até embelezar um tema tão devastador. Fá-lo sem nunca menosprezar a dor daqueles que sofreram e continuam ainda hoje a acarretar com as consequências daquele período da história humana, mas sim através da perspetiva de uma criança, o Jojo Rabbit (Roman Griffin Davis).
O filme passa-se durante os anos da grande guerra, mas a história em si é contada através dos olhos de uma criança de 10 anos. Assim sendo, toda a atmosfera é nos apresentada de uma forma mais desafogada e inocente, ao ponto de ser quase agradável e divertida. Para começar, Jojo considera Adolf Hitler (Taika Watiti) o seu melhor amigo. Pode parecer inconcebível aos olhos de hoje em dia, porém, o nosso protagonista, tal como inúmeras crianças e jovens que foram criadas na Alemanha nazi, não sabiam bem quem respeitar e o que pensar. Não tinham vivido o suficiente para fomentar os seus próprios ideais e foram facilmente compenetrados pela propaganda nazi, pelos discursos de ódio e pela figura ardente que foi Adolf Hitler. Assim, o espectador percebe perfeitamente o porquê de todos aqueles jovens ficarem absolutamente deslumbrados e compactuarem sem hesitar com cada medida daquele regime, desde a perseguição e ódio pelos judeus à militarização de todas as idades. Desta forma, sempre que o famoso ditador aparece no ecrã fá-lo sendo uma caricatura de si mesmo, uma versão satírica do líder fascista, assim como o próprio filme é uma sátira de toda aquela época.
Tudo no filme aponta para isso mesmo, para que como aquilo que estamos a ver não é nada mais que a versão infantilizada deste tenebroso capítulo da humanidade. Sendo uma versão idealizada por uma criança, tudo é luminoso, belo e jubiloso. As cores e a luz por exemplo, não são desvanecidas, escuras ou até praticamente inexistentes como em muitíssimos filmes que retratam o mesmo tema, mas sim vívidas, acolhedores e exorbitantes (exceto numa cena, mas já lá chegarei).
A cinematografia é, por vezes, como se bidimensional, de certo modo emprestada de Wes Anderson. Tal como nos seus maravilhosos filmes, muitas das cenas são construídas com uma grande precisão e simetria, com um rigor matematicamente impreciso. Todavia, mesmo isto, que à superfície aparenta ser apenas uma escolha artística, é mais um relembrar de que não estamos a assistir a um documentário, mas sim à ilusão pueril de um menino de 10 anos. A meu ver, Taika Watiti implementa neste filme tal estilo cinematográfico porque também ele representa a simples bidimensionalidade que é ser-se criança, e como o mundo é quase sempre somente divertido e inofensivo.
Toda a sátira que o filme representa tem maior destaque e, sinceramente, mais piada na cena em que (para não estragar a quem ainda não viu não exponho as razões que levam à cena em si) a saudação nazi “Heil Hitler” é efetuada 9 vezes. Ora, claro que um número assim é um exagero usado para fins humorísticos, mas é também um perfeito exemplo do ridículo patamar a que se chegava na altura e da obsessão doentia que é inerente ao fascismo e direcionada aos autoproclamados “escolhidos” para liderar certos países a erguer-se das cinzas.
Porém, como já foi referido, o filme não tenta desprezar a dor provocada pelas atrocidades desumanas cometidas pelos nazis durante aqueles longos anos e exibe também ele angústia, miséria e suplício. Ao longo do filme (e vou aqui spoilar algo para quem ainda não viu) vamo-nos apercebendo do amor que há entre a mãe de Jojo Rabbit (Scarlett Johansson) e o próprio. É lindo, é humano. O realizador escolhe também evidenciar os sapatos da mãe em várias cenas. Passa-nos ao lado a relevância de tal escolha, não nos apercebemos do porquê, mas vamos, de facto, memorizando o aspeto dos sapatos usados pela própria e sempre que os vemos rapidamente associamos a personagem com o calçado tão narcisista. Até que, a determinada altura, a câmara foca nos sapatos de novo, mas, desta vez, fá-lo onde e de uma forma que apenas tinha sido feita quando o filme quis mostrar que pessoas estavam enforcadas em plena praça pública. Para não ser demasiado gráfico, Wakiki escolheu em dois momentos mostrar apenas os sapatos dessas mesmas pessoas. O primeiro, para evidenciar a crueldade do regime e da perseguição daqueles que estavam contra ele, mas também para contextualizar e preparar para o que surgiria mais tarde. A segunda vez foi precisamente quando a mãe de Jojo Rabbit é morta da mesma forma, no mesmo sítio, pelos mesmos motivos que as outras vítimas. A diferença é que, desta vez, conhecíamos e gostávamos de quem usava os sapatos que pairavam no ar.
Em suma, diria que o filme e esta última cena agora referida em específico estão paralelamente relacionados com a forma com que usamos o humor. Tal como o filme irradia boa disposição, cores vivas e divertimento para contar uma versão distorcida de uma tão conhecida e hedionda história, também nós usamos o humor para nos defendermos e modificarmos certos acontecimentos passados, deixando-os mais aconchegantes e afáveis. Porém, deixamos cair a máscara de vez em quando, deixamo-nos sofrer e relembrar e, tal como Jojo Rabbit chorou a morte da mãe, sozinho e destroçado, ficando o filme repentinamente sem cor, sem vida, também nós voltamos a recordar, sem piadas nem distrações. Quando assim for, agarremo-nos a essas memórias, que fazem de nós quem somos hoje, tal como o Jojo se agarrou e abraçou a sua mãe que tanto o amava. Que se use este filme para aprendermos uma vez mais com os erros do passado, para que estes não se repitam, para não cairmos de novo em regimes totalitaristas e desumanos. Vejam este filme, riam-se enquanto este vos educa, mas sem ódio, que deste sempre houve em demasia.
“Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita.” – Valter Hugo Mãe, “O filho de mil homens”