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Crítica

Perfil Perdido: Do gesto nasceu a palavra

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Duas pessoas em palco.

“Não consigo dissociar o som da ação”, diz Beatriz, enquanto rasga uma folha de papel. Cada vez que a rasga, ouve-se o som revelador do traumatismo e então afirma: “Verdade!”. Quando, por sua vez, emite um som construído por si mesma, diz o inverso: “Mentira!”.

É com esta estonteante revelação que iniciamos a viagem carnal de “Perfil Perdido”, uma peça de teatro encenada por Marco Martins. Nada pode ser mais perturbador do que questionarmos conceitos tão elementares da nossa existência, desses que mantemos em caixas de definições seguras e asseguradas. Mentira.

Ganhamos, logo a seguir, consciência da figura omnipresente que acompanhará a história: “O meu pai disse uma vez: eu não percebo a Beatriz”. Esta é a frase que serve de mote para o desencantamento que se segue.

Desengane-se quem acha que esta é uma história de encantar porque não há maior desencanto do que adquirir progressiva lucidez sobre o abandono afetivo.

Imagem: Teatro Nacional S. João

Beatriz vai intercalando as aventuras que vivera com o pai em viagens, contando episódios documentados em postais de que o público também é detentor. Depois, há manifestações mudas – mas ensurdecedoras de tão catárticas – onde Beatriz, em conjunto com Romeu Runa, protagoniza rituais sangrentos, movimentos intencionais desenhados pelo subconsciente e danças que falam.

Toda a peça são recortes que desafiam os sentidos.

Movimentos, sons repetitivos, música que desassossega, toques, a voz gritante do medo, o sangue como pano de fundo e um microfone usado para, por vezes, se soltar palavras. Mas o texto aqui é construído pela fisicalidade a dois, passo a passo, letra a letra.

“Quando alguém não gosta de nós, o fracasso é nosso”, diz Beatriz. Somos seres altamente sedentos de gratificação, daquela que vem da fonte. Precisamos da mão firme, que segura e valida, daquela pessoa que percecionamos como figura heroica, ao mesmo tempo que procuramos o seu olhar terno. Verdade.

Imagem: Teatro Nacional S. João

Na era formativa dos afetos, o papel de um progenitor deve ser mais do que providenciar pela subsistência dos filhos. Sem a sua voz confirmadora , somos apenas uma sombra demasiado pequena para ser notada.

Onde começa a memória e termina a invenção? A realidade mescla-se com a ilusão, o sapateado, a espiritualidade, o desejo frenético que pede para ser dançado. Não importa dividir os fenómenos mas desconstrui-los para nos vermos a nós e às nossas sombras de costas, de lado, a 3/4, de perfil perdido para o abismo do luto.

Com encenação de Marco Martins, Perfil Perdido foi sofrendo várias mutações pelo condão de Beatriz Batarda e Romeu Runa. Ser inteiro em palco é deixar o coração num vaso translúcido e os medos a esvoaçar pelo sótão. É entregar-se absolutamente em prol da evasão das dores de crescimento.

Flutuamos também a medo, porque o palco, desta vez, foi um espelho que nos agigantou os temores e nos relembrou da fadiga que é a de se pensar como gente.

Artigo da autoria de Márcia Branco

 

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