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Cultura

Elif Shafak: um olho sobre o mundo

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Foi por Elif Shafak que soube dos incêndios na Turquia, ainda antes de eles serem anunciados pela televisão portuguesa. A partir daí, passei a ver em Shafak uma janela para o que acontece no mundo, mais precisa e real do que as que a televisão costuma abrir. Vi nas suas palavras a urgência para que as coisas sejam resolvidas, uma urgência que me pareceu verdadeira, e não encenada. Uma real preocupação, sem a histeria e o sensacionalismo do costume.

É esta uma das suas grandes qualidades: a capacidade de tocar o coração e de nos mostrar o outro lado da História, ensinando-nos aquilo que dificilmente alguém nos consegue ensinar.

Quando abri “A Bastarda de Istambul”, o meu olhar prendeu-se em Zeliha, uma rapariga de 19 anos que enfrenta a chuva e os olhares de desaprovação das ruas de Istambul. Ela veste-se de forma provocatória: é bela, tem cabelos negros e encaracolados, olhos verdes, usa minissaia, saltos muito altos e uma argola no nariz. Tem uma personalidade forte, enraivecida e farta das convenções. Luta constantemente contra elas. Fez um piercing porque era proibido, e fê-lo sozinha na casa de banho. No entanto, ela é inexplicavelmente atraída por chávenas de chá, que contrastam abertamente com o seu horror pela fragilidade, especialmente a fragilidade feminina. O leitor deve agora imaginar alguém cuja primeira impressão grita: “Não te metas comigo!”

Zeliha Kazanci vai a uma clínica para fazer um aborto, mas tal não se concretiza, pois ela, inconsciente, acaba por entrar em pânico. Sem medo da reação da família – um conjunto de mulheres (porque os homens da família Kazanci morrem cedo, devido a uma maldição antiga) muito diferentes entre si – Zeliha anuncia que está grávida e que pretende ter o bebé. Esse bebé converter-se-á em Asya, uma rapariga igualmente cheia de raiva, apaixonada pela música (particularmente por Johnny Cash) e por livros de filosofia existencialista. Declara o niilismo como sendo a sua corrente filosófica de eleição, e, como se sente perdida por não saber quem é o seu pai nem nada sobre o passado da sua família (ou mesmo sobre a História da Turquia), prefere fechar-se dentro de si mesma e negar o resto do mundo. Não crê em Deus/Alá e troça dos rituais espirituais da sua tia Banu. Não consegue, ainda, lidar com a vida numa casa de mulheres, porque se sente presa e sufocada pelo amor das suas tias (mesmo a sua mãe é por ela chamada de “tiazinha Zeliha”, e não “mãe”).

Do outro lado no mundo, entre São Francisco e o Arizona, nos Estados Unidos, vive Armanoush, uma rapariga de 21 anos, filha de pai arménio e de mãe americana. Rose, a sua mãe, abdicou da sua vida de estudante para se poder dedicar a Armanoush. Assoberbada pela família do lado arménio e pelas suas inúmeras vontades, Rose acaba por renunciar a uma cultura que não compreende e casa com Mustafa Kazanci, um homem turco (e o único irmão das tias Kazanci) que conhece num supermercado do Arizona. Armanoush cresce com uma consciência muito diferente da de Asya: enquanto que, para um turco, o passado não importa, para um Arménio o passado é algo cíclico (“a dor é hereditária”, segundo a própria Shafak), sendo o que acontece aos antepassados também parte de uma geração do presente. Armanoush sabe que a família vive nos Estados Unidos porque, em 1915, o povo arménio (assim como os gregos e os assírios) foi cruelmente massacrado pelos turcos (na altura, o Império Otomano, que colaborou com os Alemães durante a Primeira Guerra Mundial). Armanoush é, inclusive, neta de uma sobrevivente aos massacres, que se salvou quase por um golpe de sorte (uma vez que se afastou da família, adoeceu e ficou estendida na estrada até ser encontrada).

À semelhança de Asya, Armanoush vive perdida e cansada do afeto da família.  É uma rapariga tímida, recusa-se a ter namorado (ao contrário de Asya, que nada tem a ver com o estereótipo da mulher turca conservadora) e é amante de literatura (o seu autor preferido é Milan Kundera). Não tem a raiva de Asya, mas tem a sua determinação: para escapar um pouco às tensões familiares, Armanoush decide ir para Istambul (a cidade original da sua família), em vez de fazer a habitual viagem entre o Arizona e S. Francisco. Decide procurar a família Kazanci, a família do seu padrasto, e acaba por conhecer Asya, formando ambas um vínculo espiritual que já vem de há muito tempo. O seu objetivo principal é conhecer a história que ninguém lhe conta, e procurar perceber a visão dos turcos sobre o sucedido nos massacres de 1915. Geralmente, apenas é Asya quem apoia Armanoush nas discussões sobre se os massacres devem ou não ser considerados genocídio, o que provoca a ira geral.

Um facto interessante sobre este livro é os capítulos terem o nome de um ingrediente da cozinha turca, o que poderá sugerir que o livro, na totalidade, será suficiente para a confeção de uma receita.

Como se a receita simbolizasse o mundo como um todo, e um ingrediente a parte sem a qual nada é possível. Como se a receita simbolizasse a boa sorte. Fica, assim, lembrada a importância e o significado de todas as pequenas coisas que, combinadas, fazem funcionar as causas maiores. Também é de notar as semelhanças entre a cozinha arménia e a cozinha turca, o que prova que estes dois povos inimigos têm mais em comum do que imaginam. E mesmo a amizade de Asya e de Armanoush mostra que a coexistência pacífica é sempre possível. Asya representa a Turquia, um país islâmico, mas laico, e não tão conservador como um desconhecido imaginaria. Já Armanoush representa o povo Arménio, católico, traumatizado e tradicional, forçado a viver na diáspora.

Antes de ler este livro, não sabia onde era a Arménia, nem que a Arménia tinha sido dos primeiros Estados a adotar o catolicismo como religião principal. Nem tão pouco me lembraria da brutalidade dos massacres infligidos pelo Império Otomano. Inclusive, ao investigar mais sobre a Arménia, soube que, apenas em 2015, foi usada a palavra “genocídio” para qualificar o que sucedeu há mais de 100 anos atrás.

Por causa destas páginas, Elif Shafak podia ter sido condenada a 3 anos de prisão, por ter abordado tópicos ainda sensíveis, feridas mal saradas.

E quantos tópicos sensíveis estão ainda por abordar? Quantas atrocidades permanecem escondidas de nós? Elif Shafak não só nos ensina História, mas também que é preciso ter um olho sempre aberto para compreender e ver mais além. Foi com Shafak que consciencializei/relembrei que os direitos das mulheres não são algo garantido, mesmo no século XXI. E que basta um golpe, um impulso, para que desapareça a liberdade, hoje em dia um bem escasso.

A verdade é que a História da Humanidade não cabe nos livros nem desaparece com o passar do tempo. O passado e o presente fundem-se num só. É isso o que vem provar “A Bastarda de Istambul”, absorvente e surpreendente até nos locais mais confusos e barulhentos.

Artigo da autoria de Margarida Inês Pereira