Cultura
David Bruno: “Portugal é uma fonte de inspiração inesgotável”
Autodesignado antropólogo da era digital, iconoclasta e olheiro da portugalidade, o cantor de 36 anos começou por fazer instrumentais, mas o fascínio pelo “Portugal B” levou-o a começar a escrever as primeiras letras num “exercício prático de repetir coisas que ouvia na rua”. Hoje, David Bruno une o reconhecimento da crítica e das massas e, sozinho ou acompanhado, promete continuar a ser megafone da imprevisibilidade da suburbanidade portuguesa que, garante, “há sempre e vai continuar a existir.”
Em entrevista ao Público em agosto, disseste que o objetivo da tua música não é fazer rir, que o humor existe na cabeça de quem te ouvia e não na tua. Sentes que o público está a absorver a tua música erradamente ou és tu que não estás a transmitir a mensagem da forma que queres?
Nem um nem outro. A beleza da arte é que é subjetiva e fica a sua interpretação ao cargo de quem a vê ou ouve, como os quadros. Estás a olhar para um quadro: uma pessoa pode pensar que está ali um cão, outra que está um peixe e quem é que está errado ou certo? Estão todos certos. O que eu disse é que não faço música com o objetivo de fazer humor, ou seja não vou “ei vou fazer uma música para me fazer rir”. São episódios que eu vejo, acho peculiares, são coisas muito características da nossa cultura: aquelas saídas, aquele tipo de frases – acho peculiares e ponho-as em músicas. Há muitas pessoas que ouvem aquela música e não acham piada. Não é que achem que seja má, mas acham que é uma música… Pessoas que não têm sentido de humor. O pessoal que tenha mais sentido de humor acha que tem piada. Estão todos certos. O que disse é que o meu objetivo não é fazer rir, no entanto quem se rir está certo, quem não se rir também está certo.
Mas enquanto artista achas que não é o teu papel definir qual é a interpretação de quem ouve.
Não, de maneira nenhuma.
Quando estás a fazer a música olhas de forma séria para esse “rídiculo”, para essa portugalidade: as histórias de Gaia, etc. Achas que olhares de uma forma humorística tira valor artístico ao teu trabalho?
Se olhasse dessa forma não ia fazer a mesma coisa que faço. Não sei [se perde valor artístico], não me cabe a mim sinceramente [decidir isso]. Como espectador ou como ouvinte não sou grande apreciador de música humorística, tipo o Jaimão ou assim. Não estou a dizer que não tem valor artístico – o que não falta são pessoas que gostam e tem o seu público (e muito bem) e têm todo o direito de o fazer. Como espectador não é o que eu aprecio mais.
“Consegui começar a chegar lá partindo de onde? Estou num café ouço um “gajo” a dizer uma coisa e faço uma letra sobre isso. E esse exercício é que me ajudou a construir as letras.”
Os teus álbuns são sempre nesta linha. Nunca pensaste ir por outro lado, fazer outra coisa, apostar noutra abordagem?
Já pensei muitas vezes. Uma coisa nunca há de mudar: a portugalidade. Isso é ponto assente – nunca irei fazer um disco sobre Londres ou sobre LA, será sempre sobre Portugal e coisas que vejo aqui. Agora em termos de estilo de música, sim. Mas isso fui variando – O Último Tango em Mafamude é mais mellow, mais baladas, o Miramar Confidencial é mais dos anos 80. Basicamente eu posso mudar o meu estilo de música quando eu quiser porque não sou refém de nenhum estilo de música. Não sou um artista de hip hop nem sou um artista de house. Eu conto histórias: cada álbum é uma história e o estilo musical é o que me ajuda melhor a contar aquela história. Daí o Miramar Confidencial, que é a história de um caloteiro dos anos 80, ser muito synth pop anos 80. O Último Tango em Mafamude é uma história trágica, então é muito baladas, bandas sonoras de filmes românticos dos anos 70. Se um dia fizer um disco sobre a noite do Porto, se calhar faço um disco de reggaeton.
Então a portugalidade nunca foi uma questão, nunca quiseste abdicar. Talvez tenha sido até o que te moveu.
Foi, claro. Antes fazia instrumentais e não escrevia letras porque não sabia sobre o que havia de escrever. Nunca fui uma pessoa muito abstrata, sempre fui muito prático e concreto em tudo o que faço na vida. Então era difícil sentar-me e imaginar e escrever um verso muito abstrato. Consegui começar a chegar lá partindo de onde? Estou num café ouço um “gajo” a dizer uma coisa e faço uma letra sobre isso. E esse exercício é que me ajudou a construir as letras. No início, “prai” há 5 anos, não fazia letras nenhumas, só fazia instrumentais, só era produtor. Mas foi esse exercício prático de repetir coisas que ouvia na rua que me ajudou a crescer enquanto pessoa que faz letras.
Por seguires sempre a mesma linha temática e teres a mesma inspiração, não temes que a tua obra se torne previsível?
Não, porque é inesgotável. Portugal é uma fonte de inspiração inesgotável e se fosse para ter esgotado, já teria esgotado há muito tempo. Sempre existiram e quando eu desaparecer, vão continuar a existir pessoas que se vão continuar a inspirar neste mesmo tipo de pessoas em que me inspiro. Pessoas especiais que há em todas as terras. Há pessoas engraçadas, há pessoas que fazem coisas sem noção e têm atitudes que são muito desadequadas…eu vou desaparecer e isto vai ficar aqui para sempre.
Mas achas que a “magia” da tua música, ou o interesse que as pessoas têm vem dessa imprevisibilidade ou do gosto que demonstras em procurar essa imprevisibilidade?
Essa imprevisibilidade há sempre e vai continuar a existir, portanto não tenho medo nenhum e acho que é uma fonte infinita.
Tu focas a tua música mais numa cultura local, quase para nicho na sua forma de interpretação. Achas que isso é incompatível com a chegada aos grandes palcos que qualquer artista ambiciona?
Sinceramente, não estou preocupado com isso. Nunca fui um músico de pensar em palcos.
Não tens essa ambição? Focas-te mais na tua obra?
É fixe, eu vivo disso e tenho conseguido, mas sinceramente nunca me preocupei muito em falar sobre certos temas porque se calhar a minha música chega a menos pessoas e é mais de nicho. Nunca me preocupei minimamente com isso, sempre me preocupei em fazer uma coisa que fosse genuína e sobre a qual eu tivesse muita propriedade para falar. Eu sempre fiz isso e, sinceramente, vendo casos concretos – por exemplo vês o C. Tangana, o J Balvin, são “gajos” que o mais regional não pode haver – aquilo são estilos musicais, pronúncias, letras locais. E mais artistas: a Björk, o Omar Souleyman… Eu acho que o mundo da música se globalizou nos anos 2000, toda a gente fazia a mesma cena e perdeu-se muita identidade regional. E agora, e acho que não é só na música, também há na gastronomia: por exemplo, no Porto não vale a pena abrir um restaurante de pratos franceses porque ninguém vai lá. Vai vender se fizeres coisas que são de cá e sobre as quais tens propriedade para vender e sabes falar porque és de cá. Portanto, eu acho que a música tem dado uma viragem nesse sentido e se não estava preocupado até altura, então acho que agora estou muito menos.
Agora essa genuinidade até ajuda, até soa mais natural.
Sim, sim. Em Portugal, pensa-se muito nisso de “ai não sei quê, isto é uma coisa muito regional e não se vai exportar”, mas vais ver os países lusófonos, vês o kuduro, vês a música brasileira…nunca estiveram minimamente preocupados e são coisas que exportam loucamente. Nunca se preocuparam em adaptar.
Se calhar, pensar em exportar pode limitar essa exportação porque essa intenção fica muito evidente.
Sim, exatamente. Há ali uma tentativa de fazer uma coisa “para inglês ver”.
E por tudo isto, sentes que és levado a sério pelos teus pares no mundo da música?
Sinceramente, sim. Ao longo dos últimos anos, tenho sentido isso, sim. Em termos artísticos, tenho tido reconhecimento de muitas pessoas que não imaginei que tivesse. Tenho tocado em muitos palcos, tenho ido a muitos sítios. Nesse aspeto, sinto-me muito realizado. Mas a coisa que me realiza mais não é só ser reconhecido a nível artístico por intelectuais e pensadores da arte e da cultura. A coisa que gosto mais e de que me orgulho mais na minha música e na minha carreira é ter pais e filhos, e às vezes até avós, a gostarem da minha música. Todos ouvem e todos vêem coisas diferentes. Os mais novos vêem uma coisa, os mais velhos vêem outras e é isso que tenho mais orgulho, por ser uma coisa muito transversal.
Sentes muito isso? Que, por contares histórias, muita gente conhece e identifica-se com essa realidade?
Sim, sinto muito isso. É verdade e é a coisa que me orgulha mais. Mais do que reconhecimento cultural por pares.
E às vezes até é mais difícil chegar a essas famílias do que à crítica. Às vezes a música é apreciada pelos críticos e pelos pares e não chega às pessoas.
Eu diria que o mais difícil é chegar a todos.
Mas de um ponto de vista de democratização cultural, achas que contribuis para isso ao produzir arte pouco elitista?
Certo, é verdade. E isso é das coisas de que me orgulho mais.
Deste, em 2018, uma entrevista ao Observador sobre O Último Tango em Mafamude e disseste que o álbum era sobre um amor não correspondido entre ti e Gaia. Sentes que esse amor já é correspondido?
Já, completamente. Esse álbum perdeu o sentido e nesse aspeto é bom que tenha perdido. Mas sim, agora já não. Sinto que é assim um pouco com todos os artistas. Até sem ser na arte, até na tua vida pessoal. Se estás em casa e és bom a fazer croquetes, os teus pais não acreditam que tu vais fazer vida a fazer croquetes. Se de repente começares a vender croquetes e fores contratado para seres chefe de croquetes num restaurante eles dizem assim: “Eh lá afinal este “gajo”…”. E eu acho que isto acontece assim na música também. E sim, nessa altura era não correspondido. Agora de maneira nenhuma.
“E há uma coisa muito fixe – o pessoal que comenta a dizer “quem me dera ser de Gaia!”. E tu não estás a mostrar as caves de vinho do Porto nem nada.”
Sentes que é mais de Gaia que vem esse carinho familiar de que estavas a falar?
Posso dizer que fui a Castelo Branco e em Castelo Branco estavam lá dois pais com as filhas. As filhas tinham vinte e tal, estudavam fora e os pais tinham cinquenta e tal e compraram bilhetes para ir ver o meu concerto. E até te digo uma coisa, acho que o êxito é maior fora do Porto do que no Porto nesse aspeto. Porquê? Por exemplo, quem morar em Lisboa – em Lisboa tenho uma grande base de fãs por causa disso. Porque eles vêem esta cultura, as expressões, o calão como uma coisa muito exótica. Nós apenas vemos como “Oh não acredito que ele fez uma música sobre o Carpa [restaurante em Vila Nova de Gaia]”. Para eles é “Ei o que é isso? E comem rojões..”. Para eles é “O que é isso? Bifanas..” – é muito exótico. Então acho que tenho funcionado bem fora do Porto.
Isso até é consequência do centralismo. Têm uma certa cultura e tudo o que vem de fora parece estrangeiro.
É verdade. E há uma coisa muito fixe – o pessoal que comenta a dizer “Quem me dera ser de Gaia!”. E tu não estás a mostrar as caves de vinho do Porto nem nada. Estás a mostrar Mafamude, um restaurante simples e tal, mas pronto é a arte de saber vender o país (risos).
Achas que este último trabalho com o Mike el Nite foge um bocado desse “exótico” de Gaia, vai para outra narrativa?
É sobre o país todo, mas o espírito é o mesmo.
Mesmo por causa do Mike el Nite tinha de ir por outro sítio.
Por isso mesmo. Eu não podia fazer um álbum com o Mike el Nite que fosse só sobre Gaia, não é? E não ia fazer umas músicas sobre Gaia e outras sobre Lisboa. Éramos dois “gajos” a fazer músicas sozinhos, cada um para seu lado. Mas ele tem muita cultura de Portugal, até do interior – ele é filho do Quinzinho de Portugal, não sei se vocês conhecem, é um artista português dos anos 90. E ele andava com o pai, ia às terras todas, ele conhece muito bem Portugal então chegamos a esse consenso de fazer músicas sobre sítios que conhecíamos os dois para termos um ponto de encontro.
Então se calhar até foi mais um esforço teu de acompanhar esse conhecimento.
Não porque eu também conheço muito porque trabalhei no setor da cortiça e andava aí nas aldeias todas de Portugal durante 7 anos a comprar cortiça aos agricultores de norte a sul. Portanto conheço também muito bem tudo o que são recantos de Portugal. E como partilhamos esse conhecimento de Portugal fomos por aí para fazer o disco.