Cultura
A Morte Da Sereia: teatro novo em mares já dantes navegados
Há textos e autores eternos, é certo. Mas a dramaturgia portuguesa contemporânea também está de boa saúde e com vontade de partir para o alto mar dos grandes palcos. Assim o sabe Inês Filipe – ex-aluna da Pós-Graduação em Dramaturgia e Argumento da ESMAE e autora e encenadora d’A Morte da Sereia – ainda que o nascimento desta peça tenha sido ligeiramente inesperado.
Tudo começa em 2020 quando, ao ler “A Dama do Mar” (1888) a impulsionadora do projeto conhece Ellida, a protagonista, uma mulher que tem de escolher entre deixar o marido e partir com um marinheiro por quem se apaixonou dez anos antes. À medida que a narrativa avançava, algures na ânsia de descobrir a escolha da personagem, Inês Filipe interrogou-se sobre a possibilidade dela não ficar com nenhum. Também Susan Sontag, em 1998, ao ler o mesmo clássico, tinha tido uma dose de comichões e, por isso, o reescreveu e adaptou, mudando-lhe o final feliz. Agora, entre 10 e 19 de dezembro, no Auditório do Grupo Musical de Miragaia, podemos assistir a mais uma nova “versão”, desta vez, bem aportuguesada.
“Esta peça foi escrita a pensar nestes atores”
Se, inicialmente, o objetivo era navegar pelo intemporal texto de Ibsen, o processo trocou as voltas à equipa. Algures entre pesquisas, reflexões e debates intensos sobre género, família, tradição e mudanças de tempos, as ambições mudaram. “Um colega nosso, a certa altura, disse-me que “A Dama do Mar” era uma peça muito bonita mas se eu queria trabalhar um tema específico devia escrever uma história nova… e eu aceitei o desafio”, partilha a encenadora.
Assim surge A Morte da Sereia: um espetáculo dentro de um espetáculo sobre uma jovem sereia que resgata um marinheiro perdido numa tempestade e, com um beijo, transforma-se em humana. Perdidamente apaixonados, são confrontados com a terrível decisão: ficarem juntos em terra ou partirem de novo juntos para o mar. Podia ser só isto… mas Inês Filipe queria falar mais aprofundadamente sobre mulheres e sobre coragem. Por isso, como pano de fundo desta narrativa, que se assume como o enredo de uma peça de teatro amador feita num seio quase familiar, está uma realidade doméstica tradicional e assustadoramente próxima.
“Este espetáculo é o resultado de um dilema que muitas mulheres vivem nos dias de hoje”
Durante 120 minutos, numa real mas simbólica viagem no tempo, repensamos a coragem e a liberdade e perspetivamos (de sobrolho franzido) os casamentos arranjados e o controlo que os pais têm sobre as escolhas profissionais e sexuais dos filhos. Deixamo-nos boiar nesta tragédia cómica sobre sonhos misturados com segredos e amores dançados com medos, talvez sem noção do que quão real é tudo o que vemos em cena. No fim, ao mesmo tempo que aplaudimos o espetáculo, o texto e toda a equipa, aplaudimos também (e inevitavelmente) todas as mulheres de todos os tempos, principalmente dos tempos injustos – vá, ou seja, todos os tempos. Aplaudimos a sua força, resiliência e coragem de gritar contra vidas submissas e oprimidas. Aplaudimos porque é a forma que temos de fazer barulho para que o mundo oiça bem que toda a gente pode, tal como deve, ser e fazer tudo o que bem quiser.
Esta encenação de Inês Filipe é sobre a morte mas está cheia de vida.
E parte dessa vida foi ganha com os apoios d’ A Turma, da Ágora Cultura e Desporto do Porto e da Confederação, muito embora “o compromisso de que este projeto ia acontecer” tenha sido “anterior a qualquer dinheiro cair”. Fazer teatro não é fácil – a equipa pode dizê-lo e a história pode mostrá-lo – mas fazer teatro é como fazer amor: pode parecer surreal, mas com fantasia, vontade, vulnerabilidade e entusiasmo faz-se tudo. A Morte da Sereia é uma homenagem a Ibsen mas, sobretudo, um mergulho num mar gelado em pleno inverno: atrevido e jovial mas, diz-se, uma memória que fica.
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Artigo da autoria de Inês Sincero