Crítica
Homem-Aranha: Sem Volta a Casa – Para lá da teia
Se este artigo fosse uma história iniciaria da seguinte forma: “Tudo começou em 2019…”. Foi neste ano, alguns meses após a estreia de Homem-Aranha: Longe de Casa, que Kevin Feige e Amy Pascal começaram a planear um terceiro filme da franquia do aranhiço interpretado por Tom Holland. Após as reações mistas que a segunda longa-metragem suscitou, dividindo os entusiastas do herói por todo o mundo e quase levando à quebra do pacto que une Sony e Marvel, havia um enorme ponto de interrogação sobre qual o caminho a seguir. E foi nesse momento que o destino desta trilogia ficou traçado.
Depois de Longe de Casa os fãs reclamaram, e muito. Peter Parker não era mais a personagem que conheciam, carecendo de responsabilidade, maturidade, altruísmo e estando restringido a chorar a morte de Tony Stark. Foi por isso que, talvez pela primeira vez, a Sony se deixou guiar por completo pela vontade de quem ama o amigo da vizinhança e começou a construir um novo rumo a partir disso. Desde então, e sob planeamento dos produtores, começou a ser cozinhado o maior filme de 2021.
O Peter Parker do Marvel Cinematic Universe (MCU) precisava de se encontrar. Para isso, chamaram aqueles que já haviam batalhado contra ele: os velhos conhecidos Duende Verde (Willem Dafoe), Dr. Octopus (Alfred Molina), Homem-Areia (Thomas Haden Church), Lagarto (Rhys Ifans) e Electro (Jamie Foxx). Tínhamos a base da receita, mas faltava a cereja no topo do bolo, o ingrediente secreto que tornasse a receita digna de estrela Michelin. E Jamie Foxx, sentindo o mesmo, deu-nos a provar a primeira migalha ao divulgar uma foto com três Homens-Aranha. De lá para cá, passaram meses e meses de expectativa, ansiedade, teorização e rebuliço com os rumores gerados na internet de que Tobey Maguire e Andrew Garfield regressariam para ajudarem o seu “irmão mais novo”, Tom Holland, a descortinar o que é ser Peter Parker. Já passou um mês desde a estreia do filme e, 1,7 mil milhões de euros depois, aqui estou eu, um fanático deste universo, a redigir sobre ele.
Homem-Aranha: Sem Volta a Casa rebobina os eventos do seu antecessor, versando sobre o caos que se tornou a vida de Peter após revelada a sua identidade. Desesperado perante esta nova realidade, Parker, que se havia tornado o alvo número um da polícia de Nova Iorque, vai ao encontro de Dr. Estranho (Benedict Cumberbatch) na tentativa de recuperar o anonimato e os tempos de outrora. No entanto, o feiticeiro supremo falha a magia e desencadeia a vinda de várias caras conhecidas que, apesar de provindas de outra realidade, têm algo em comum: o Homem-Aranha.
Sou um confesso idólatra deste mundo do Homem-Aranha. É uma paixão que vem desde pequeno, quando aproveitava a época de Carnaval para orgulhosamente envergar o meu melhor fato aranha, cheio de esponja nos braços de modo a parecer musculado. Para alguém como eu, este filme é uma pura dádiva por duas razões: o seu impacto na comunidade e a mensagem que difunde, de modo mais exponencial que nunca.
Relativamente ao primeiro ponto, este filme tem um poder único, nunca antes exercido por outra saga, o de unir. Unir todos aqueles que são fãs da figura do aranhiço, mas que teimavam em vangloriar apenas um dos três intérpretes do trepador de paredes. Antes, existia a necessidade de escolher entre um conjunto de filmes, entre um ator ou um diretor. Homem Aranha: Sem Volta a Casa, com os três Homens-Aranha, transmite com fulgor um dos valores que o acarinhado herói defende: a união. Todos são únicos, especiais e incríveis (sim, incríveis!). A nós, comunidade, resta-nos apoiar todos, celebrando o que Tobey e Andrew fizeram, apoiando Tom na sua jornada. Escrito isto, falemos da mensagem.
Quando há cameos sublimes, o ambiente do cinema equipara-se a um estádio de futebol. É magnífico ver todos os ícones já mencionados juntos, uma vez que, para além de engrandecerem o conteúdo do filme, fazem dele um clássico instantâneo. Ao longo da narrativa, estamos em constante contacto com a evolução do Peter e do Homem-Aranha e acompanhamos as decisões que este tem de tomar à medida que os desafios se tornam cada vez mais perigosos e se agigantam perante ele. Tudo isto salienta o papel de Peter enquanto cidadão comum com problemas, dificuldades e escolhas a serem feitas. O que torna esta personagem da cultura pop tão icónica e popular é o facto de Peter nunca deixar de ser humano. As suas escolhas frequentemente terão consequências, por vezes, muito duras de aceitar. Mas, independentemente da amplitude do sofrimento pelo qual tenha de passar devido às suas opções, faz aquilo que tem de fazer: o Bem.
O Bem é a única coisa que guia Peter e, neste filme, isso está ainda mais presente. Parker poderia simplesmente enviar de volta os vilões que vieram de outra realidade, como o Dr. Estranho pretendia fazer. (Mas o que o distingue do Dr. Estranho, e de qualquer outro super-herói, é a sua constante perseguição daquilo que é correto, ainda que isso possa gerar reveses para si. Este filme é um abraço para aqueles que, mesmo optando pela escolha certa, acabam por sofrer consequências. É no calor dos braços que o filme nos estende que explica que, no fim de contas, a aprendizagem que deriva desses danos é que eles devem servir de combustível para acordar no dia seguinte e persistir em fazer o Bem). Mas ele não é como Dr. Estranho, é maior e, sobretudo, melhor. E isso sai-lhe muito caro porque, por vezes, ainda que estejamos a fazer o certo, a vida vira-nos as costas. Mas, no final do dia, o que fica são as nossas ações, os nossos princípios e valores, as vidas que são por nós ajudadas ou salvas e o legado das pessoas que são sacrificadas em prol de um mundo melhor.
O Homem-Aranha é o super-herói mais humano e filantropo que alguma vez existiu. Tem poder, mas não é isso que o molda. O poder que tem é um veículo que serve única e exclusivamente para viabilizar os seus atos de pura bondade. Na batalha em que Peter defronta o Duende Verde, não são apenas duas forças que estão em conflito. É uma luta entre o poder com e sem responsabilidade, uma luta que remete para Homem-Aranha (2002) e para O Incrível Homem-Aranha 2 (2014). No mundo em que vivemos, esta mensagem não podia ser mais importante.
Homem-Aranha: Sem Volta a Casa é, sem dúvida alguma, um marco nos filmes de cultura pop a todos os níveis, tanto pelo número de pessoas que mobilizou em redor deste franchise, como pelo ensinamento que propaga e perpetua. A trama até nem é das mais amarradinhas e bem arquitetadas: a qualidade cinematográfica do primeiro ato, quando comparada com o segundo e, sobretudo, com o terceiro, é muito inferior, mas conduz a algo que é muito mais relevante que coesão narrativa, conduz a uma obra que transcende o guião proporcionando uma experiência simplesmente inesquecível para a audiência.
As atuações, nomeadamente de Andrew Garfield, Willem Dafoe, Tom Holland e Tobey Maguire são lendárias. Uma produção cheia de coração, que nos faz vibrar e sentir. Isto, caros leitores, é cinema. Porque, embora muitas pessoas não consigam ver mais do que um super-herói comum ou uma personagem de ficção científica, a verdade é que o Homem-Aranha é um autêntico símbolo no que à prática de boas condutas diz respeito. É um ícone que tem a aptidão de mover milhões de miúdos e graúdos por este mundo fora, vai muito para além das suas capacidades, do seu poder, da teia. Porque, por trás da máscara, ele é simplesmente mais um cidadão. Qualquer um podia usar a máscara, mas nem todos o fariam com responsabilidade, de forma alheia aos interesses próprios e pensando no bem dos demais. Apesar de não ser muito mencionada, esta é a grande lição que o cabeça de teia nos ensina.
Artigo escrito por João Pedro Pereira