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Cultura

A atualidade desconcertante de “Pesadelo em Ar Condicionado”

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Logo nas primeiras dezenas de páginas de “Pesadelo em Ar Condicionado”, o leitor pode se ver tentado a enquadrar o livro em algum gênero. Ficção? Autoficção? Autobiografia? Memórias? Diário de Viagens? Ensaios? 

Quando Henry Miller nasceu, o mundo estava a uma década de entrar no século XX. Quando faleceu, estava a duas de entrar no XXI. Foi testemunha dos principais eventos de um século que, apesar de insistir em lançar a sombra da sua pior faceta, está ficando para trás. Mas também há heranças úteis: o frescor, a atualidade e o sacolejo que Henry Miller ainda provoca nas certezas de quem o lê. 

Escrito em 1940 e publicado em 1945, “Pesadelo em Ar Condicionado” foi relançado em Portugal no fim do ano passado pela editora Antígona. Americano de Nova York, Miller teve a ideia de escrever um livro sobre a América anos antes, quando estava em Paris. Nas páginas iniciais, declara que teve que viajar cerca de quinze mil quilômetros até conseguir inspiração para escrever a primeira linha do livro. 

Para Henry Miller, tudo o que parecia digno de ser dito sobre a maneira americana de viver, poderia condensar em – no máximo – trinta páginas. Escreveu cerca de trezentas. Paris era centro da beleza, sofisticação intelectual e estética, e, claro, de efervescência cultural. O fascínio de Henry Miller. Não há dúvidas de que nessa época – estamos falando do início do século XX – Paris ocupava mesmo este espaço na vida de um artista. Mas também foi nela que pensou em escrever sobre outro lugar, a sua terra natal, a cuja maneira de viver dedicava insignificantes trinta páginas. 

Escreveu que em nenhum outro lugar havia encontrado uma fábrica de vidas humanas tão amorfas quanto na América.

O desconforto com o lugar de onde vinha – e para o qual muitos já à sua época dariam tudo para se mudar em busca de uma vida melhor – é o que guia o olhar atento, lúcido e desafiador de Henry Miller sobre os Estados Unidos. 

Retornando de uma Europa em guerra, o escritor da trilogia Sexus, Plexus e Nexus coloca o pé na estrada e circula o país. O livro é o resultado de suas impressões. Ao longo dos quase vinte capítulos, anota os vícios, a exploração, a artificialidade e as contradições de um sistema e de um estilo de vida. Pergunta-se para onde estão indo num frenesi de atividades. Se o homem busca saúde e liberdade, mas a medicina não é capaz de garantir saúde e o dinheiro não é capaz de garantir liberdade, para onde estão (estamos) indo? Outra contradição: a nação que mais produz no mundo é incapaz de alimentar decentemente, vestir e abrigar um terço de sua população. 

Fonte: Wikimedia Commons

Mas não é só sobre questionamentos angustiados e críticas duras que o livro se ergue. Henry Miller encontra belezas sufocadas, diamantes no lixo produzido pela babel do consumo. São amigos que reencontra, figuras surpreendentes com que se depara, cidades agradáveis e acolhedoras; espaços de respiro. 

Após a publicação do livro, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o país que Miller via se desfazendo, não econômica e militarmente, mas no âmbito moral, se estabeleceu como uma das potências que dividiu o planeta em dois durante metade do século XX. Mais uma contradição que “Pesadelo em Ar Condicionado” parece antever, como o mal estar que precede a mudança de uma ordem. Por isso não deixa de ter certa correspondência com os dias atuais. 

Com uma guerra outra vez às nossas portas e o mundo embicando para uma nova direção que ainda desconhecemos, um excerto do livro resume e dá sentido ao significado de mal estar. O nova-iorquino que amava Paris nos escreve que não é que uma guerra esteja se aproximando cada vez mais; é que, com guerra ou sem guerra, tudo acabará em grande violência. 

Artigo escrito por Thiago Medeiros

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