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Cultura

FLEE – A FUGA : a (im)possibilidade de uma morada

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Depois da fuga forçada do seu país de origem, como é que o ser humano estabelece um novo lar num lugar desconhecido? A acompanhar a sequência de abertura de corpos em fuga e aflição, ouve-se um diálogo, em voz-off, sobre a relação entre as ideias de lar, conforto e permanência. A sequência inicial de Flee evidencia o caráter absurdo da ideia de casa para alguém que foi forçado a deixar a sua zona de origem e afeto por razões alheias à sua vontade. O medo da perda de identidade e a falta de pertença a um lugar, inseparáveis da condição de refugiado, são o leitmotiv do filme.

A partir de um diálogo entre o realizador Jonas Rasmussen e o seu amigo refugiado, sob pseudónimo de Amin Nawabi, Flee apresenta a vivência periclitante sofrida pelos refugiados em busca de morada segura na Europa. Depois de ser obrigado a separar-se das suas raízes, a violência e a opressão sofridas durante a procura por um lugar seguro no espaço europeu, deixam marcas insaráveis na memória do protagonista, que o impedem de estabelecer a sua vida, em harmonia e paz, com o seu namorado, Kasper, na Dinamarca. Habituado a não confiar em ninguém e a viver cautelosamente, Amin tem aversão à ideia de se estabelecer definitivamente num lugar, apesar de ser o seu maior desejo desde criança.

Vinte anos depois da sua fuga de Cabul, Amin decide contar a sua história, na esperança de que a divulgação do seu testemunho o liberte dos fantasmas do passado. Atormentado pela solidão do seu percurso errante, sem destino definitivo nem regresso possível, a exposição do trauma vivido permite-lhe uma reconciliação com o seu passado e possibilita a construção de uma morada permanente, conferindo-lhe um tão necessário espaço de pertença.

Frame do filme “Flee”

Diante do clima de insegurança provocado pela guerra Afegã-Soviética, Amin e a família vêem-se obrigados a abandonar Cabul e a procurar refúgio no continente europeu. Além de deixar a terra natal, Amin parte sem o seu pai, cujo paradeiro desconhece desde que este fora aprisionado sem justificação pelas autoridades comunistas. Menor de idade, Amin acompanha a mãe na atribulada travessia pela Europa, com destino à Rússia, onde os espera o seu irmão mais velho.

Pelo caminho, enfrentam adversidades, exponenciadas pela clandestinidade da deslocação. O perigo de serem deportados para Cabul pelas autoridades europeias era iminente, o não reconhecimento do estatuto de refugiado deixava-os frágeis a tratamento abusivo e desumano. Os meios e as condições precárias em que viajaram, o negócio do tráfico humano e da falsificação de identidades e o abuso de poder das autoridades russas espelham a realidade violenta a que vários refugiados estão sujeitos diariamente.

O continente europeu, promessa de liberdade, segurança e conforto, revela-se um paraíso perdido, uma utopia enganadora, onde só o dinheiro e o acaso podem salvar alguns corpos da ruína.

Sem a proteção do discurso dos direitos humanos pela falta de reconhecimento do estatuto de refugiados, os requerentes de asilo ficam reduzidos a um estatuto de vida perdível, vida que não importa salvar.

Numa época em que a Europa se tornou palco de guerra, pela invasão russa da Ucrânia, o debate sobre a crise dos refugiados torna-se ainda mais urgente e cada vez mais tardio. Sendo o mediterrâneo um mar-cemitério de vidas humanas, é imperativo pensar em soluções de acolhimento destas vidas que se veem desamparadas em território europeu. Ao chamar a atenção para a precariedade vivida pelos refugiados oriundos do Médio Oriente, Flee desnuda a hipocrisia europeia alicerçada na distinção entre vidas humanas, colocando em causa o caráter universal dos direitos humanos.

Além das atrocidades bélicas e do tratamento abusivo que sofreu na Europa, Amin Nawabi viveu, desde cedo, atormentado pela sua homossexualidade inconcebível no meio onde se desenvolveu. Por viver no seio de uma família tradicional, o confronto com a homossexualidade não é pacífico e Amin chega a procurar na medicina uma cura para a sua orientação sexual.

Frame do filme “Flee”

Para além da atualidade dos temas, a originalidade do filme prende-se também com as potencialidades do cruzamento entre o cinema de animação e a imagem documental.

Flee é marcado pela animação, tanto na narração da memória do protagonista, como no retrato do seu presente. Contudo, incorpora também imagens-arquivo, o que confere uma mistura de linguagens visuais que espelham a complexidade de representar a memória.

Na senda de filmes como Persépolis (2007), de Marjane Satrapi e de Vincent Paronnaud, e Waltz with Bashir (2008) de Ari Folman, Flee expande os limites documentais do cinema de animação. Por ser um testemunho autobiográfico que pode chocar pela brutalidade da história, o cinema de animação revela-se uma ferramenta fundamental para a proteção da identidade das testemunhas. 

Além da conservação do anonimato das personagens, a elaboração da entrevista em formato de animação não inibe quem testemunha com o constrangimento da câmara. Há na animação um lugar seguro para testemunhar – confere uma espontaneidade que o cinema documental não oferece.  O mito da animação ser intrinsecamente ficcional é derrubado pela crescente aposta no documentário de animação, para contar memórias de guerra e de separação, que têm ferido milhares de espetadores com histórias reais de desumanidade.

Assim, Flee expõe uma ferida aberta na história da humanidade. A partir do testemunho de Amin Nawabi, podemos vislumbrar inúmeras vidas que foram obrigadas a abandonar as suas casas, que veem a sua humanidade suspensa em território europeu. Através da história de sofrimento, dor e desespero de Amin e da família, Flee desperta-nos para a precariedade comum e para o dever de denunciar os enquadramentos que distinguem e marginalizam certas vidas humanas. 

Ao exibir o tratamento desumano a que os refugiados são submetidos, Flee desnuda a hipocrisia europeia que se esconde orgulhosamente por detrás do seu discurso em defesa da universalidade dos direitos humanos. O filme de Jonas Rasmussen denuncia a coexistência de duas Europas: uma Europa para os europeus e uma Europa que deixa indefinidamente à deriva, sem dignidade e sem morada, os corpos que nela procuram um refúgio.

Artigo escrito por Mafalda Pereira