Cultura
E depois de abril, o que será de nós?
24 de abril de 1974, 22h55m. Nos estúdios dos Emissores Associados de Lisboa, em plena Avenida Elias Garcia, era transmitida a canção “E Depois do Adeus” de José Niza, interpretada por Paulo de Carvalho, a senha que assinalou o arranque da operação militar contra o regime. As tropas puseram-se a postos para derrubar o governo de Marcello Caetano e devolver às ruas do país, presas pelas correntes da censura e da ditadura, o sabor da liberdade.
Nomes como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho carregavam na sua arte o peso da censura e a determinação de um povo de lutar pela liberdade. Embora não se possa dar como certa a relação simbiótica entre a revolução e a música de intervenção, a verdade é que estes movimentos artísticos e culturais foram espelho do descontentamento popular e responsáveis pela mobilização de grande parte da massa calada. Cantava-se contra os que “comem tudo e não deixam nada”, o domínio das elites, o capitalismo e a repressão. Deu-se a revolução, superou-se o Período Revolucionário em Curso, aprovou-se a constituição, rendemo-nos à identidade europeia. Mas com tudo isto, sentir-se-ão os artistas verdadeiramente livres? Será ainda a voz do povo quem mais ordena? O que falta fazer? Quais são as novas vozes da resistência?
Em cada esquina um amigo, em cada rosto liberdade
“A liberdade total ou a ausência dela são ambas altamente produtivas. A ausência pelos limites que impõe e pela forma como tens de encontrar maneiras de te expressar dentro desses limites. Em liberdade tens um espaço gigante onde te podes perder”. Esta é a visão de Ivo Canelas, ator português. Nasceu em dezembro de 73, não tem memória do regime, mas sabe que não quer lá voltar. Recorda a altura em que trabalhou com Jorge Silva Melo, dramaturgo e ator, que costumava dizer-lhe que o corpo da geração jovem era diferente, “mais livre”, sem memória dos tempos de ditadura em que tudo era controlado.
Valter Hugo Mãe “só seria escritor se pudesse deter a coragem de dizer o que queria dizer”. Isso vai para além de criar personagens que o reflitam: o trabalho de idealizar oponentes, figuras que não o representam, é um exercício de liberdade. A arte “deve problematizar todas as coisas”, não há teorias sagradas nem dogmas, tudo é passível de questionamento.
Na Torre do Tombo são incontáveis os relatórios de Censura. Em 1968, num relatório da PIDE lia-se, acerca de “Apresentação do rosto” de Herberto Helder: “é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética que como obra literária não mereceria qualquer reparo se não apresentasse passagens de grande obscenidade […] Nestas condições entendo que é de propor a proibição de Circular no País para este livro”.
São incontáveis as obras que ficaram por ler por não se enquadrarem na doutrina sagrada perpetuada durante os 48 anos que antecederam a Revolução. O regime queria manter o povo na ignorância, num rebanho obediente e não predisposto ao desafio. Salazar elogiava constantemente a ruralidade (leia-se insipiência), que dizia característica do povo português. Se se mantivesse assim, sem levantar ondas, subjugado a um sistema opressor, a ditadura continuaria viva e de boa saúde.
A palavra forte e justa
Se é evidente que as palavras passaram de inimigo-mor do Estado para tijolos, cimento e pilares na edificação democrática, torna-se importante perceber quem são, o que pensam e como agem, hoje, as vozes de comando na intervenção pela manutenção e evolução deste edifício.
“As palavras impactam, de certeza, um espírito sensível, mas também, pela sua violência, até um espírito menos sensível. A arte terá sempre um impacto profundíssimo na realidade e na sociedade em que está inserida”
Ecoa em vários veículos opinativos e, até, de forma comum, na visão popular, uma ideia de esmorecimento gradual do papel interventivo dos agentes culturais. Ivo Canelas mantém-se crente e apologista quer da arte de intervenção quer do impacto das palavras: “as palavras na arte, quando organizadas de forma profunda e inteligente, têm sempre impacto”.
Lembrou a peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, escrita e encenada por Tiago Rodrigues, que refere ter “palavras que não deixam ninguém indiferente”. Abordou a forma como as mesmas têm a capacidade de tocar todo o espetro da sensibilidade humana: “As palavras impactam, de certeza, um espírito sensível, mas também, pela sua violência, até um espírito menos sensível. A arte terá sempre um impacto profundíssimo na realidade e na sociedade em que está inserida”.
A artista plástica Mariana Rebola admite o desânimo interventivo do cenário cultural, que justifica com uma falta de “perceção da dimensão da revolução”, com o desvanecimento da “noção de povo e comunidade” e o abandono da ambição de atingir “uma certa liberdade igualitária para todos”.
“A democratização cultural significa que a cultura legitimada, erudita, oficial chega às classes populares e às massas. E não chega.”
João Teixeira Lopes, sociólogo e professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, concorda com a artista. Atribui alguma naturalidade ao processo que considera resultar de uma ressaca da “efervescência revolucionária” do período pré-revolucionário e revolucionário. Vai mais longe e relembra o problema sistémico de falta de “democratização cultural e democracia cultural”.
Nós queremos trabalho, casa decente e cultura para toda a gente
A 23 de outubro de 1974, Vasco Gonçalves, chefe do III Governo Provisório, apresentou o programa das Campanhas de Dinamização Cultural. Com o objetivo de fortalecer a aliança entre o Povo e o Movimento das Forças Armadas (MFA), tendo como principais linhas a luta antifascista, a divulgação do programa do MFA, a isenção partidária e a discussão da problemática nacional, este programa dinamizou até 1976, o ano do seu fim, mais de 2000 ações culturais e cívicas. José Afonso defendia que “a revolução cultural não é [eu] poder ir tocar a mais sítios; a revolução cultural é [eu] ir aos sítios e encontrar música de lá”.
“Por exemplo, há muitas pessoas que habitam nas freguesias contíguas ao Teatro Nacional São João que, apesar de haver até um dia gratuito, nunca tinham transposto as portas e uma delas dizia-me que nem sabia que existia um dia gratuito.”
A linha da revolução quer do lado dos artistas, quer do lado das instituições era clara: urgia uma revolução que democratizasse o acesso e a criação cultural. Mas teremos lá chegado?
“Há um problema de democratização cultural”, defende João Teixeira Lopes. “A democratização cultural significa que a cultura legitimada, erudita, oficial chega às classes populares e às massas. E não chega.”
São várias as propostas para atingir essa tão aclamada e aguardada democratização cultural e a análise sobre como têm ou não sido aplicadas é o barómetro certo para entender quais os progressos feitos e, principalmente, o que está por fazer. Mariana Bina, investigadora e colaboradora do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa faz uma parte dessa análise no artigo “Património gratuito, património pago: a democratização da cultura e políticas de gestão” .
A autora foca-se na democratização do acesso aos museus através da gratuitidade e uma série de outras medidas “compensatórias ou diferenciais” que atraiam as pessoas aos espaços culturais. “Os estudos têm mostrado que a gratuitidade efetivamente funciona para atrair mais visitantes, mas não para democratizar a cultura, já que os frequentadores, nessas oportunidades, costumam ser aqueles que já têm essas práticas culturais como hábito.“
Teixeira Lopes acrescenta que é preciso perder a “vergonha cultural”: “O acesso à cultura é, muitas vezes, dificultado por barreiras simbólicas e culturais. Por exemplo, há muitas pessoas que habitam nas freguesias contíguas ao Teatro Nacional São João que, apesar de haver até um dia gratuito, nunca tinham transposto as portas e uma delas dizia-me que nem sabia que existia um dia gratuito.”
O consenso está longe de ser atingido mas, o sociólogo não tem dúvidas ao apontar a ideia de que é preciso “saber estar, saber comportar, ter uma linguagem que não se possui” como principal motivo do afastamento entre as massas e a arte: “quando existe essa vergonha cultural essas pessoas auto excluem-se”.
O investigador acredita que é necessária, para uma agilização do processo de democratização cultural, a desconstrução destes preconceitos e a dinamização de projetos artísticos com intenções de os desconstruir. Porém, relembra que todo esse processo deverá necessariamente ser feito “sem paternalismos, sem terem a ideia de que estão a ilustrar ou a educar de forma descendente e paternalista as pessoas e, em particular, as classes populares”. Deve sim ser feito numa perspetiva “horizontal” e, realça, “com durabilidade” pois, “de nada adianta se acontecer uma vez ou outra quando há um subsídio se isso não é feito de forma sistemática”. Destaca ainda a importância de “aliar a criação cultural com intervenção política”.
Mudam-se os tempos, mantêm-se as vontades
Em 2006, Sam the Kid, usando essa aliança, lançou o álbum Pratica(mente), um dos pilares do hip-hop em Portugal. Assume, como sempre foi típico do género, um papel de denunciante: “Yeah, não sou licenciado nem recenseado/Com paciência, há-de aparecer alguém credenciado, com Moral/Que me faça votar, me faça lutar, me faça notar/E faça escutar a campanha eleitoral”. Num tom anti-sistema, confessa a falta de crença na máquina política que nos rege. A crítica tem 15 anos mas podia ter 15 dias, as lutas sociais são intemporais mesmo quando os destinatários alteram.
https://www.youtube.com/watch?v=U95I6JxjIrs
Quando parece que o espírito revolucionário deixou as ruas, as vozes da intervenção surgem barulhentas. Ainda que atualmente não sintamos o seu impacto da mesma forma, são elas que ajudam a preservar a democracia: “corre-se o risco de se esquecer o passado quando não temos perceção da falta de liberdade”, afirmou Mariana Rebola.
É importante que se viva num constante exercício de autoanálise e autocrítica para que a liberdade continue do nosso lado. A artista plástica mostra confiança na sua geração: “entre pessoas jovens sinto que não há tanta projeção de estigmas”. Mas a verdade é que Portugal é um país envelhecido e a responsabilidade não pode recair inteiramente sobre os ombros da juventude. João Teixeira Lopes considera que “é preciso socializar as pessoas nas linguagens artísticas e culturais”. Talvez os corpos estejam a ficar mais livres, como Silva Melo dizia a Ivo Canelas, e talvez seja esse o caminho para a manutenção da liberdade e da herança de José Mário Branco.
E depois de abril, quisemos saber de nós. Saber da nossa liberdade, da paz, da igualdade. Os artistas quiseram conhecer o sabor de fazer arte sem barreiras, saber de si e do seu poder. Mas ficou muito por fazer. A democracia chegou e consolidou-se, mas para a democracia cultural está reservado um longo e lento caminho de implementação. A voz do povo ordena “25 de abril sempre”, mas para a cultura ficou a sensação de esquecimento e de uma revolução por cumprir.
Artigo da autoria de Marta Sofia Ribeiro e Tiago Sousa