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Cultura

“O Gato das Botas – O Último Desejo”: o gato que se tornou lendário quando quis deixar de o ser

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Pisei o chão da sala de cinema convencido de que os meus próximos 110 minutos estavam prestes a ser preenchidos por uma diversão vulgar, ainda que suficientemente atrativa para me fazer enfrentar o frio que se faz sentir por estes dias. Todavia, a sensação com que saí passado este tempo foi de raios de sol a banhar a minha alma, que por esta altura já estava nas nuvens depois de ter ficado sem chão. Calor de quem sente e de quem voltou a sorrir como há algum tempo não acontecia.

Mas vamos por partes. Tinha eu um aninho quando Shrek 2 teve a sua estreia e, com ela, deu a conhecer uma personagem que viria a ser muitíssimo acarinhada pelos fãs. Um pequeno animal felpudo e de olhar ternurento, que se transformava num verdadeiro “fora da lei” quando calçava as botas, ajeitava o chapéu e empunhava a espada pontiaguda da sua bainha e cuja personalidade afiada era devidamente acompanhada de uma pronúncia hispânica que perfumava a sua forma de ser e agir. Um felino ruivo que, de tão apaixonante como popular, não teve de esperar muito até tomar o protagonismo que havia sido abandonado pelo ogre verde em 2010, data em que saiu o último capítulo da sua história.

Já se sabe como é Hollywood e a sua indústria. Se alguma película ou franquia atinge proporções capazes de alimentar uma fonte que gere receita, então a orientação vai ser no sentido de explorar essa nascente ao máximo. E não podemos afirmar, de todo, que O Gato das Botas tenha sido um fracasso na bilheteira, ao faturar quase 550 milhões de euros com um investimento de 130 milhões. No entanto, e analisando a animação aos dias de hoje, penso que não acrescenta em nada às dezenas de outras obras do género, ao apresentar uma jornada cujo fio condutor é frágil, e que se suporta única e exclusivamente no carisma das personagens. Acredito que o diretor, Chris Miller, se tenha entregue bastante à criação da longa-metragem, no entanto faltaram elementos que permitissem ao produto final transcender o patamar médio em que se insere, o que nos deixa com um resultado insosso.

Deste modo, e apesar de o balanço ser relativamente próspero, a DreamWorks deixou a marinar o regresso do gato com o olhar mais amoroso do cinema ao grande ecrã, apostando numa série de televisão distribuída pela Netflix, que teve lugar a 77 episódios e chegou ao fim em 2018. Ainda assim, a reação positiva da comunidade terá sido determinante para o estúdio voltar a apostar no herói da saga de Shrek e dar o aval ao desenvolvimento da sequência do spin-off de 2011. Decisão, essa, que não podia ter sido mais bem tomada.

A comando dos diretores Joel Crawford e Januel Mercado, O Gato das Botas – O Último Desejo tinha tudo para ser apenas mais uma fita comum e sem grande criatividade na tentativa de arrecadar milhões sem ter de incorrer em grandes riscos. A lenda do felino indomável que, ao descobrir que apenas lhe resta uma das nove vidas, embarca (juntamente com alguns parceiros) na sua última aventura para concretizar o seu desejo final – recuperar as vidas que outrora lhe pertenceram e perpetuar o seu legado entre os vários que o veneram em Espanha. No entanto, e para minha surpresa, não vos escrevo para dar notoriedade a mais um título entre os muitos que estão compreendidos na secção do medíocre e do esquecível.

A animação está nomeada aos Oscars deste ano. Foto: D.R

Tendo por base a premissa da película, podíamos ser tentados a achar, num primeiro momento, que se trata de uma obra simples e sem grandes ambições, porém O Gato das Botas – O Último Desejo não demora até desmistificar esse pensamento. O filme não perde tempo em apresentar o núcleo das personagens relevantes e, ao fazê-lo, impõe um ritmo que nos deixa colados ao enredo desde o princípio. Para tal, os envolvidos não se inibem de explanar as suas ideias ao diversificar nos estilos de animação (ora uma animação computadorizada mais clássica, ora uma animação que recorre a métodos mais tradicionais de desenho à mão) e ao explorar a riqueza dos elementos que esta técnica viabiliza, refinando em muito o trabalho feito há mais de uma década de maneira a destacar-se no campo visual, para o qual também contribui a categórica movimentação dos animais herdada de criações como Spirit – Espírito Selvagem e O Panda do Kung Fu.

Não obstante, uma boa nota no plano da imagem não basta para que um título se distinga. De modo a alcançar esse feito, esta sequela beneficia, sobretudo, de duas virtudes: a liberdade e a sensibilidade artística. Quando cheguei a casa e me dediquei a aferir a receção à fita, esperava uma onda gigante de aprovação e adoração, algo que só se confirmou parcialmente. Não foram assim tão poucos os casos de pessoas que são da opinião de que a longa-metragem é demasiado assustadora e horripilante para os mais novos, bem como as reclamações acerca dos estilos da animação.

Acontece que, neste segundo capítulo do felpudo alaranjado de San Ricardo, os criadores não receiam o risco de falhar. Pelo contrário, eles bailam, desfilam e gracejam sobre ele. Estamos a falar de uma animação que incide sobre um protagonista extremamente querido pelos mais novos que belisca o terror, mas sempre sob um ideal acima de todos os outros – o equilíbrio. Sim, é verdade que há cenas mais cruas, no entanto estas são graciosamente contrapostas com outras de chorar às gargalhadas e tudo porque os diretores não temem elevar estas emoções à enésima potência, de forma a subir a nossa pulsação enquanto assistimos. O facto de um filme ser dirigido para as crianças e adolescentes não implica que o seu conteúdo tenha de ser pautado por um positivismo quase sem filtros e onde tudo corre bem. Apesar disso, é necessário reconhecer que as preocupações da juventude são, muitas vezes, mais elementares, o que também não implica que não seja um desassossego abrangente e que possa ser interpretado por cada um conforme cada qual. Nesta medida, toda a obra é quase uma fábula alegórica, que comporta várias pequenas metáforas sobre a morte, e os vários medos que ela representa, o que se encaixa perfeitamente em qualquer faixa etária. Porque a morte, mais do que tudo o resto, é inevitável.

Para esta composição há também que ressalvar os efeitos sonoros que contribuem de forma impecável para o clima de tensão nas cenas mais tenebrosas, assim como nos cenários mais coreográficos e animados. A banda sonora é igualmente competente, cumprindo o seu papel ao nível da ambientação, ainda que, neste caso em particular, eu considere que haja algumas canções ligeiramente fora do enquadramento a que a narrativa se propõe. A respeito dos pontos menos positivos, de notar por último que o filme abdica de alguns elementos de coesão na jornada do “EL Macho Gato” de forma a seguir com a história idealizada, mas que, no meu entender, não comprometem a experiência.

A destacar ademais as performances dos dobradores portugueses que fizeram um esforço enorme para se ajustarem às características intrínsecas das personagens e do universo, emprestando o seu talento com enorme dedicação, nomeadamente a Paulo Oom (Gato das Botas), Raquel Tavares (Kitty Patas Fofas), Mafalda Luís de Castro (Caracolinhos), Bruno Ferreira, Maria Henrique e Jorge Mourato (Bebé, Mamã e Papá Ursos) e Marco Delgado (Lobo).

Deste modo, e em jeito de conclusão, resta dizer-me que O Gato das Botas – O Último Desejo tem o coração do seu antecessor, mas desta vez não permite que ele dance só, e por isso acompanha-o com destreza e astúcia para entregar um resultado que supera em muito o original, algo que, como se sabe, poucas vezes acontece. E, ao jeito de um grande filme de animação, tem uma linguagem super cativante que nos ensina lições aparentemente complexas do jeito mais acessível para levarmos connosco até que um dia demos de caras com um Lobo faminto. Até lá, e ainda que corra por fora e esteja na pista contra candidatos renomados, o filme já garantiu a sua nomeação ao Óscar de Melhor Filme de Animação e eu arrisco-me a dizer que tem as suas chances…

Por João Pedro Pereira.