Cultura
Tiago Nacarato apresenta “Peito Aberto”, um diário da sua alma
Groove de sexta-feira à noite
Recém-chegado do concerto no Capitólio, em Lisboa, na sexta-feira anterior que, segundo o próprio, foi “muito bom, estava toda a gente a dançar e foi uma diversão incrível”, Tiago Nacarato estava com o alto astral que já o caracteriza.
O entusiasmo para o espetáculo da sexta-feira seguinte, dia 27 de maio, no Hard Club, no Porto era evidente, assim como a vontade de partilhar este seu Peito Aberto uma vez mais. É uma pessoa de pessoas, partilha a sua energia e recebe-a de volta.
Os espectadores (de todas as idades) dançavam e sentiam cada música como se fosse sua, quase que simbioticamente. Não houve momentos mornos na sala de espetáculos onde Nacarato acolheu e foi acolhido.
Dizem que “your vibe attracts your tribe” [a tua vibe atrai a tua tribo]. A música de uma sexta-feira de primavera portuense confirmaria isso. “Adoro as pessoas com quem convivo, amo muito pessoas, fico mesmo feliz e dou imensos abraços, então acaba por ser uma postura que é comportamental e conceptual também”, confessou o artista.
Leo Middea ficou encarregue da primeira parte. Tiago Nacarato considera-o “extraordinário”, “dá um concerto muito bom”. Apresentou músicas conhecidas e outras que os espectadores do Hard Club puderam conhecer em primeira mão.
O Groove e swing do músico carioca e a interação doce com o público daria o mote para uma noite que teria ainda Tatanka como convidado, com quem Nacarato já tocou diversas vezes. Diz “fazer sentido dar o ar de sua graça, fazer os shows de guitarra em que é tão bom e cantar com aquela voz gigante”. Cantou a sua (e dos seus The Black Mamba) “Love Is On My Side” e uma versão da versão (sem redundância) de Donny Hathaway da música “Jealous Guy”, acompanhado pelo anfitrião da noite.
“Queria ter alguma coisa mais dançante e tal e por causa da Bárbara Tinoco e da música que escrevi com ela para o Festival da Canção, tive oportunidade de tocar nesse projeto que se chamava “Passe-Partout”, com o Pity, que foi o coprodutor do meu álbum”
A escolha do quarteto de convidados destas duas apresentações está relacionada com a atmosfera atual deste álbum (em Lisboa, ouviu-se Mimi Froes e MARO). Foram escolhidos a dedo, funcionando como complementos da sonoridade que se faz ouvir. No primeiro álbum, Lugar Comum, a lógica foi a mesma: os convidados Miguel Araújo, António Zambujo, Salvador Sobral e Ana Bacalhau emanavam os ritmos do álbum. Neste segundo projeto chamou pessoas que considera que se identificam com os temas do seu Peito Aberto.
A origem de Peito Aberto
Sabe que estas escolhas para os concertos podem fazê-lo parecer um “festivaleiro”, considerando que “convida duas pessoas que ganharam o Festival da Canção, apesar de ter mais a ver com a musicalidade delas do que com outra coisa qualquer”.
O próprio passou por lá, em 2020, em conjunto com Bárbara Tinoco, que interpretou “Passe-Partout”, tema cheio de referências, inspirado na chanson française e em Henri Salvador, um dos crooners que admira.
Dessa colaboração, para além de uma tour em 2020, surgiu também este novo álbum, de som mais gingão.
“Queria ter alguma coisa mais dançante e tal e por causa da Bárbara Tinoco e da música que escrevi com ela para o Festival da Canção, tive oportunidade de tocar nesse projeto que se chamava “Passe-Partout”, com o Pity, que foi o coprodutor do meu álbum, ele que é baixista dos Black Mamba e da Sara Tavares e etc… E, então, foi isso, ‘preciso de uma coisa mais groovy’ e ele ajudou-me a chegar aí”.
Nacarato, que diz ser “muito estudioso nesse sentido de carreira e do que é que se anda a fazer ou a deixar de fazer, etc…” sentia que ouvia as suas músicas no Spotify e “faltava algum groove e alguma coisa que abanasse a anca e que fosse dançável”.
Peito Aberto ainda é o “início desse caminho, um disco de aprendizagem e de como vai chegar a um sítio dançável”. Em concertos, sente que já chegou ao ritmo de dança, mais depressa do que em disco.
“A música realmente serve para [essa paz] e na “Paz Interior” falo exatamente disso, da aceitação, que é um passo importante para, cada vez mais, nos sentirmos bem com aquilo que acontece. Sinto que nós, seres humanos, precisamos de explorar mais esse lado em que estamos muito apegados, em que aquela pessoa é nossa, aquela coisa é nossa, das expectativas…[e do desapego]. “
Acompanhado pela sua banda e segunda família, Salcedo nas teclas, Michael nas percussões, Tomás Marques no contrabaixo eléctrico, Edu Mundo na bateria, Zé Nuno na guitarra e Sam Silva no saxofone, contando ainda com as vozes de Iolanda e Bruna, não parou quieto um segundo em palco. Mesmo com as suas músicas mais introspetivas como “Tempo” (tema do primeiro álbum que integrou o encore), “Andorinha”, “Peito Aberto” ou “Paz Interior” a energia não se esgotava. Agradeceu a todos os que o acompanham, incluindo a sua equipa, o amigo de longa data Miguel Camelo e a sua agência Sons em Trânsito, gerida por Vasco Sacramento.
Eterno retorno
“Paz Interior”, tema que encerra Peito Aberto, leva a uma conversa franca sobre o assunto. Junto da sua gata, Rute Bethânia, reflete acerca desse caminho. “Essa paz que, às vezes, está presente, sinto que é só um resquício do potencial, de uma paz ou de uma coisa maior que pode acontecer, que é o equilíbrio, de que, muitas vezes, ouvimos falar no budismo ou noutras religiões que tenham uma ligação maior com a espiritualidade”.
Sente que o “ser humano precisa de estar muito treinado para chegar a essa paz constante e esse equilíbrio, esse meio termo entre o histerismo e a tristeza apática”.
“A música realmente serve para [essa paz] e na “Paz Interior” falo exatamente disso, da aceitação, que é um passo importante para, cada vez mais, nos sentirmos bem com aquilo que acontece. Sinto que nós, seres humanos, precisamos de explorar mais esse lado em que estamos muito apegados, em que aquela pessoa é nossa, aquela coisa é nossa, das expectativas…[e do desapego]. Temos uma tendência muito grande em criar várias expectativas sobre os acontecimentos e isso tudo faz com que essa paz desapareça e é preciso um treino, uma maturidade até chegar aí. Por isso, tudo aquilo de que eu falo neste disco ainda é um resquício daquilo que acho que deve ser uma maturidade emocional plena.”
Este é um disco maduro que, apesar de “não ter um fio condutor a nível de temas”, Tiago considera ser uma “misturada grande” daquilo que ele é. É também “uma mistura de acontecimentos do quotidiano como as paixões, as coisas que vivemos, coisas mundanas, etc”. Tem “alguma coisa de política” e mostra “para onde tende a ir politicamente”, o que é explícito no tema “Estado Novo” ou no “Preparar o Carnaval”- o de Cabo Verde, não o do Brasil.
No fundo, Peito Aberto tenta “descortinar alguns conceitos” e “mostrar outras formas de vida”, tendo a intenção de falar de outros assuntos para além do amor.
Simultaneamente, a sua vibe feelgood leva à pergunta sobre o seu otimismo que considera nem sempre estar presente. Contudo, diz que algumas das suas fontes de positividade são as relações com algumas pessoas que o fazem acreditar que o mundo é espetacular, “porque conseguimos, realmente, viajar sem sair do lugar e termos sempre apoio”.
Fala, ainda, de brilho nos olhos, da relação que tem com a mãe: “Ela não me deixar cair e segurar-me pelo colarinho é uma premissa para que eu seja otimista.”
Com a preocupação de não parecer pretensioso, atribui ainda o seu otimismo às experiências que a vida lhe tem dado. ”Tenho noção de que, sendo como sou, consigo trazer para perto de mim pessoas muito especiais”.
Entre Portugal e o Brasil, de guitarra ao ombro e microfone na mão
E Tiago fez o seu percurso. Não lhe chamaria sólido, mas coerente. Nascido em 1990, portuense de gema, brasileiro de coração, esteve na área de artes na Escola Secundária Garcia de Orta. De seguida, enveredou pelo curso de Som e Imagem, na Católica do Porto, “onde trabalhas a parte sonora do cinema e da televisão. Explora-se também o lado visual, então foi um curso fixe e onde aprendi bastante sobre pensamento crítico. Tive professores muito, muito bons nesse sentido. Foi uma mais-valia ter tirado o curso”.
Diz que “Deus escreve direito por linhas tortas” e, hoje em dia, considera que até foi melhor não ter conseguido entrar em música clássica ou jazz na ESMAE, como queria, porque se calhar “hoje seria guitarrista de jazz e não cantor, por isso acabou por ser bom”.
“O processo criativo acaba por não ser de uma forma só, ou seja, muitas vezes, vou buscar referências, porque não estou a conseguir fazer de outra forma ou gosto demasiado daquela música, então quero fazer uma coisa parecida”
Antes, ainda passou pela Academia de Música Valentim de Carvalho, que integrou aos 16 anos, onde se sente um grande espírito de camaradagem. Pode ter sido uma grande influência sobre a forma como vê a vida, “porque tem um espírito muito bom, de convívio, em que as pessoas gostam de lá estar, onde tem as cenas dos combos e festas”.
Foi lá que conheceu Tomás Marques, amigo, colega de estrada e cocriador (com Pinheiro) da Orquestra Bamba Social, coletivo onde se reinterpreta o samba de raiz. Na altura da criação deste projeto, Nacarato “estava em bandas de rock e a fazer música experimental, estava noutra vibe”, logo, não aceitou de imediato o convite do amigo. No entanto, quando viu o resultado final, do que é que ia ser “Bamba Social”, percebeu que “aquilo sim era um caminho fixe, que tinha a ver comigo, porque as pessoas sorriam e cantavam imenso as músicas, eram super amorosas…”.
Talvez seja esse outro exemplo de um momento de “The Road Not Taken”, poema de Robert Frost ou de quando a vida escolhe por nós. O certo é que todo este caminho o levou até aos dias de hoje, em que canta MPB e Bossa Nova nos seus concertos.
“Onde Anda Você”, de Vinicius de Moraes e Toquinho, canção que considera ser a que mudou a sua vida e a que levou à audição (para a qual foi convidado a participar) do The Voice, fez parte do repertório da noite no Hard Club. “O Mundo é Um Moinho” de Cartola e “Desde que o Samba é Samba”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil também figuraram na setlist. Outra das canções do alinhamento foi “Areia Fina”, uma parceria com Fran, filho de Preta Gil e neto de Gilberto.
Adora tocar músicas de outros, porque diz que gosta tanto de ser intérprete, como compositor. No entanto, toca, maioritariamente, as suas músicas, cuja necessidade de criar surgiu quando tinha que construir concertos, após o The Voice.
O Brasil está consigo desde o berço, é uma ligação epidérmica. “É muito forte mesmo. Tive agora uma tournée lá e recebo muito amor daquelas pessoas…. Veem o português a tocar as músicas de que eles gostam muito e emocionam-se. É incrível, não é? Eu curto”.
Os pais são os dois de São Paulo, mas conheceram-se no Porto, num dos concertos do pai, também músico. “A vida é engraçada”
Aprendiz – da vida, dos outros e de si mesmo
Ouvem-se sonoridades de variadas influências, como Djavan em “Matriz” ou a harmonia dos Buena Vista Social Club na “Preparar o Carnaval”. A “Aprendiz” veio no seguimento de uma conversa com o amigo Dani Black. Essas são as principais influências diretas, apesar de a sua fonte de inspiração ser “tudo um pouco”, absorvendo o universo musical que o rodeia, sempre cheio de sede de aprender cada vez mais.
“O processo criativo acaba por não ser de uma forma só, ou seja, muitas vezes, vou buscar referências, porque não estou a conseguir fazer de outra forma ou gosto demasiado daquela música, então quero fazer uma coisa parecida”
Contudo, afirma que “de outras vezes, só quero arrancar de mim um sentimento amargo qualquer e, então, faço com que a música seja o meu tubo de escape. Entramos ali meio que em contacto com uma coisa que está assim algo aérea e as ideias vão chegando”.
Portanto, a obra mais recente de Tiago Nacarato inspira-se, principalmente, no artista mais cruel e justo que existe – a Vida, em todo o seu expoente. Considera que é quase “como um diário da alma” onde se põe completamente a nu. Feito para o mundo, mas principalmente para si, de forma catártica, “num processo de entropia emocional que depois resulta numa obra”.
Para o artista, uma das letras mais bonitas do álbum, que tem uma passagem escrita por Nati Valle, diz o seguinte: “Quero transformar os padrões que a vida enfim desenhou, reinventar quem me criou, renascer sendo quem sou. Deixa que eu seja um aprendiz também, mostra-me o caminho para ir além. Eu quero ouvir para me curar de mim”.
É isso que queria que “ressoasse do álbum, porque todos nós temos direito à nossa própria verdade e ninguém tem que dizer o que é que está certo ou errado”. Desdobra a letra da sua “Aprendiz” e explica: “’Reinventar quem me criou’ no sentido de reinventar conceitos que a sociedade implementa e quer com muita força que sejam reais, ‘renascer sendo quem sou’ no sentido de me experimentar tanto que, finalmente, chego ao sítio onde deveria, que é conhecer-me na plenitude. Gosto muito dessa ideia, que ainda estou a estudar e gostava que isso ressoasse, porque sinto que um disco é uma fotografia de uma fase de um músico e esta é a fase pela qual estou a passar agora”.
Depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro, no Festival EA Live, no Jockey Club, no primeiro fim de semana de junho, vai agora ao The Jazz Café, em Londres, no dia 14 de junho e ao EDP Cool Jazz, a 23 de julho, passando ainda por Itália.
Por agora, quer “curtir este álbum, dar mais concertos, levar a música o mais longe possível e tentar continuar este caminho de fazer música dançável”. Para o futuro, já tem em mente um disco duplo, como o amigo Janeiro fez, em que uma parte é acústica, voz e violão e outra parte é dançante.
Afinal, citando o próprio, “sou o que os meus olhos veem/o que consigo imaginar/sou o que no papel escrevo/sou onde o vento me levar”.
Artigo da autoria de Francisca Costa