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Cultura

Nope: uma sociedade oportunista em vigia

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Enquanto os antecessores, Get Out e Us, podem ser vistos como filmes mais intelectuais, críticos e “fora do padrão”, Nope apresenta-se como um blockbuster de verão. Mais acessível para a audiência geral e, aparentemente, mais leve e desprovido de grandes puzzles, a nova aposta da Universal tem roubado as atenções, seja pelo seu elenco coeso ou pela sua história ácida.

A trama é facilmente resumida. OJ, um jovem treinador de cavalos para produções cinematográficas, é obrigado a assumir o negócio familiar após a morte do seu pai, atingido por destroços que caíram do céu. O local de trabalho, que se funde com a sua casa, causa-lhe desconforto, uma vez que este não se encontra preparado para assumir o pesado fardo que lhe foi deixado e a morte do pai ainda lhe causa confusão.

Tudo muda quando vários dos cavalos começam a ser abduzidos por um estranho objeto que sobrevoa a quinta e que se esconde nas nuvens. De modo a salvar a quinta, que se aproxima da ruína e, consequentemente, encher os bolsos, OJ e a sua irmã, Emerald, decidem tentar o impossível e conseguir imagens que comprovem que “não estamos sozinhos”. No entanto, a tarefa não é tão fácil como parece quando o misterioso ser demonstra inteligência e outra pessoa perto da quinta também pretende tirar proveito do alienígena.

Para quem está familiarizado com a complexidade das tramas de Peele, este filme parece um tanto “hollywoodiano”. Mas é aí que reside o poder da obra, que usa cada centavo e linha do script para criticar a sociedade consumista, dramática e oportunista dos dias de hoje, onde as grandes companhias cinematográficas também têm um lugar de destaque. Os personagens perseguem a fama, a riqueza e o poder à custa de outro ser inteligente, apenas têm em mente os seus interesses. Esquecem-se do seu passado, que ainda não desapareceu por completo, de subjugação quando notam uma oportunidade de enriquecer através do controlo de outro. Como não podia deixar de ser, o realizador expõe a forma como gente negra foi e é tratada na nossa sociedade, decidindo tornarem-se mais passivos para não sofrerem consequências.

A expressão “Não olhar o animal nos olhos” é das passagens mais arrepiantes da longa-metragem, dada a sua natureza crítica mas também a forma como esta se liga e constrói a história a partir de si.

Através da aparência de filme de verão de grande escala, Nope diverte-se a fazer troça da indústria do cinema e da geração dos telemóveis e da busca incompreensível por um momento de fama. Não se esperava outra coisa de Jordan Peele, que mais uma vez, esfrega no ecrã todos os podres sociais da nossa geração, enquanto brinca com o género de terror e dá-lhe uma nova faceta. Notam-se influências lovecraftianas que, aliadas a traços de western, se fundem numa narrativa bastante prazerosa de ser assistida. É mais um tiro certeiro do cineasta e que pode facilmente encaixar-se em diversos géneros, agradando a diferentes tipos de plateia. Consegue ser extraordinariamente nostálgico e, ao mesmo tempo, fresco.

O cast foi escolhido a dedo por Peele, que traz Daniel Kaluuya de volta às suas criações. Embora o seu personagem seja aquele que tenha atitudes mais sólidas e heróicas, o menino dos olhos do mestre do terror é abafado por Keke Palmer, que rouba todas as cenas em que se encontra. A sua euforia, persistência e leveza são impossíveis de ignorar e é ela que rouba o papel de protagonista. Steven Yeun também tem uma atuação curiosa, com um enredo secundário que já faz coçar as cabeças dos fãs mais dedicados do cineasta norte-americano. O filme possui um elenco em harmonia e em que todos contribuem um pouco para a história.

O trabalho de visuais e de som é magistral, aproximando-se a uma grandeza cósmica. Tudo contribuiu para avolumar a sensação de que não estamos sozinhos e do quão pequenos somos. É um filme que deve ser apreciado com o maior ecrã possível, aliado a um bom sistema de som.

Nope certamente será discutido nos próximos tempos, quer pela verdadeira natureza da sua história, quer por migalhas que o realizador deixou em alguns frames. Jordan Peele marca o cinema uma vez mais e a curiosidade sobre os próximos projetos está no céu, literalmente.

Artigo escrito por João Jesus