Cultura

FESTIVAL POR FARO ADENTRO

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DIA 5

O recinto do festival F encontra-se num local gracioso, a Vila Adentro de Faro, zona histórica da cidade toda caiada de branco e com uma clara áurea medieval. No palco Quintalão, um largo quintal rodeado de armazéns pintados, entra às 20.45 o JP Simões.

Acompanhado somente de guitarra e voz, o cantautor começa o concerto de forma delicada: numa “canção de amor”, sobre uma sequência de acordes tocada de forma docemente trapalhona, ele cria um imaginário romântico de duas pessoas muito apaixonadas que caem do céu levemente para a terra. Nos intervalos entre as melodias o coimbrense demonstra-se um comunicador nato, falando com as pessoas sobre os concertos que tocou e viu em São Paulo e do seu amigo que vai para lá emigrar, sem qualquer embaraço com o público: umas vezes confiou-lhe pensamentos, outras até lhe conferiu responsabilidades, sempre sincero.

E assim, quer sejam nestas conversas como nas canções propriamente ditas com os seus quentes arpejos acústicos e cantadas em quatro línguas, JP Simões deu um concerto com uma clara vontade em ser humano e, como alguém diria, “com alma”. Os espectadores, esses, ficaram rendidos.

Ao mesmo tempo no palco principal, decorava-se um altar com luzes populares, caveiras de porcelana, muitos cravos de papel, um menino jesus e afins, transportando para a cena o Santo António da Alfama e a maresia do Cais do Sodré, tudo numa entidade própria, uma Lisboa reinventada pelos Dead Combo. É incrível como a música desta banda, mesmo só com o timbre das guitarras e o vibrato de Tó Trips, consegue ser tão vibrante, tão trépida, mas ao mesmo tempo tão sensualmente bonita. Ao sabor da “Povo que Cais Descalço”, num âmago quase erótico, esta alfacinha sónica de outrora e dos dias de hoje sai do palco, penetra-se no público, faz mexer os corpos (note-se que não falo exclusivamente de pessoas) e no fim, apesar da “bluesada” americana e do misticismo mexicano, berra que é portuguesa.

Em todas convivemos com a guitarra domada (e por vezes açoitada) de Tó Trips, o leque de instrumentos que completam as melodias e consolidam harmoniosamente as peças de Pedro Gonçalves e o tempo super consistente da bateria de Alexandre Frazão.

Os Dead Combo são mais do que uma grande banda: são divulgadores, uns “sócias” de D. Sebastião que voltaram com a cultura portuguesa na mão e que a servem, de forma estilizada e de certo modo light. Projectos como este deviam-nos dar orgulho por usarem como emblema a nossa cultura, que nos precede e nos procede enquanto nossa identidade. E saberão quem sabe ver (ou ouvir, como estes senhores), que andamos a perdê-la diariamente. Que venham mais bandas como estas que, sobre a bruma, alimentam as nossas esperanças.

Após o jantar, seguiu-se Samuel Úria no palco Quintalão. O pai do “Pequeno Medo do Grande Mundo” trouxe as suas guitarras singelas, mas as letras, captadas por um microfone deficiente e recebidas por um público que em parte aproveitou o concerto para conversar, mal eram absorvidas. O desenrolar das canções, ficou assim aquém do talento deste jovem cantautor.

À 00:30 sobe ao palco do largo de D. Afonso, com o set de bateria que sempre o caracterizou, o nome mais forte deste dia do Festival F, The Legendary Tigerman. O concerto abre com “Do Come Home”, música inocente de intervalos maiores super palpáveis e saborosos, e o seu videoclip à la cinema vintage, partindo então para a efusividade “rockeira” do homem tigre.

A sua música é simples e não particularmente impressionante, vivendo sim da atitude: as linhas de bateria mantêm a pujança rock e os acordes distorcidos, os bandings lascivos e os solos de saxofone fervilham. Este último alinhado com a secção rítmica faziam lembrar em alguns momentos os lendários Morphine. Foi um concerto intenso e muito dançável, com o público a interagir com o guitarrista constantemente. Enquanto cabeça de cartaz, The Legendary Tigerman cumpriu as suas funções.

O resto da noite ficou a cabo do DJ Diego Miranda, com a sua eletrónica nada mais do que ritmicamente estimulante.

 

DIA 6

Chegando ao recinto do festival para ver, às 20:45, Luísa Sobral, ainda deu tempo para espreitar o mercado de rua e os Teatrito, uma trupe de teatro de rua que animavam com o seu jeito oriental espectadores de todas as idades, havendo vários avós a ver a peça com os netos.

A cantora lisboeta abre o concerto praticamente com uma revelação inédita: vai fazer um disco para crianças, e estreia “João”, uma cantiga feliz sobre amor infantil que foi entusiasticamente bem recebida. A cancioneira fez do recinto a sua sala de estar, demonstrando vontade de reunir o público num ambiente caseiro. Contudo, apesar de ter originado o concerto mais aplaudido e de ter convidado Miguel Araújo para duas canções, Luísa Sobral não refrescou muito musicalmente, tanto nas melodias vocais como no acompanhamento dos cordofones. Ficamos com a sua acolhedora voz nasal.

Seguiu-se Tiago Bettencourt e a sua voz delicada, que abriu o concerto com uma sonoridade rígida, mas que evoluiu com o tempo para canções mais bem-dispostas, numa constante mas subtil parecença com os Toranja. “Canção Simples”, esse pedacinho sonoro de singeleza, pôs as pessoas a cantar “Sol”, ao mesmo tempo que as percussões no palco conferiam vibrações leves e cintilantes, bem conjugadas com a brisa fresca que sussurrou a agradável noite de Faro. Ficou um concerto agradável, bem digerido pelo público que em grande número enchia o recinto principal.

Às 23.00 no palco Castelo, um estrado curiosamente incorporado no pátio exterior de um restaurante, sobe a portuense Capicua, recente referência do hip hop nacional. Num concerto à volta do mais recente álbum, “Sereia Louca”, a rapper expeliu as suas letras inteligentes, que tanto faziam uma analepse autobiográfica como assentavam em temáticas mais concretas, como o papel da mulher na sociedade ou os subvalorizados “artistas de quarto”.

Acompanhada por outra MC, por um DJ e por uma fome de comunicação e partilha das suas letras, ideias e ambições, Capicua demonstrou-se, acima de tudo, uma rapper actual, bem consciente dos altos e baixos da nossa época. Dona de uma grande força em palco, a rapper foi arguta ao mesmo tempo que artista.

E quebrando esta corrente de informação sagaz dirigi-me ao palco dos cantautores, desta vez para ouvir Miguel Araújo. Entre músicas do último álbum e do aclamado “ Cinco Dias e Meio”, o portuense ainda apresentou uma escrita para a Luísa Sobral, “E Tu Gostavas de Mim”, com um travo folclórico. Em todas elas, o público aplaudiu efusivamente, tal como a praticamente todos os cantautores que passaram pelo palco Quintalão.

Os cabeças de cartaz do dia 6, Capitão Fausto, sobem ao palco principal e logo na primeira música, com uma batida mais dançável, resolvem começar a “partir tudo”. E, suportadas por linhas de baixo saltitantes e grooves de rock potentes, a banda parte para várias divagações psicadélicas, que piscam o olho ao psicadelismo de projectos dos 70´s como Jefferson Airplane.

É esta a receita do espectáculo, quer seja com o acesso de moralidade de “Nunca Faço nem Metade” ou o ímpeto de distorção de “Célebre Batalha de Formariz”. Se ontem os Dead Combo se focavam no passado, os Capitão Fausto estão mais lá à frente, num futuro próximo do rock em Portugal, com identidade própria sustentada num psicadelismo de guitarras processadas e teclados voadores. A música é de brilho, tal como o futuro que se quer.

Joaquim Guerreiro, da organização do festival F, disse ao JUP que o balanço desta primeira edição é muito positivo, tendo o público ficado muito satisfeito com a coerência dos conteúdos artísticos, diversificados projectos de música portuguesa mas todos com qualidade. Isto verificou-se por completo, quer seja na postura dos espectadores perante os artistas como na quantidade de pessoas que ocupavam o recinto do festival, chegando este em determinados momentos a ficar saturado.

O balanço do JUP é, portanto, igualmente positivo. A precisar de maturar em alguns aspectos, como na mobilidade ou na lotação de alguns recintos, o Festival F têm potencial para se tornar no festival de Verão de referência no Algarve.

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