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Blonde: “I am Norma Jeane”

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“I never wanted to be Marilyn – it just happened. Marilyn’s like a veil I wear over Norma Jeane”.

São estas as palavras que definem Blonde do início ao fim. O filme é, em si, uma narrativa acerca de identidade: é a história de um mundo que precisava de fabricar uma Marilyn, e a história de como uma mulher nascida em circunstâncias infelizes se tornou a pessoa de quem o mundo precisava. Marilyn surgiu como uma forma de escapar ao trauma e infelicidade de Norma Jeane, uma rapariga proveniente de um núcleo familiar abusivo e fragmentado. No entanto, estas circunstâncias ajudaram-na a criar um ideal de beleza física e de sensualidade, mas superficial e cada vez mais longe da sua verdadeira essência.

Marilyn libertou-a de uma vida de miséria, fazendo-a chegar aos grandes estúdios de cinema, mas não a libertou dos seus traumas. Com o tempo, Marilyn pareceu-lhe falsa, desde a sua personalidade até ao seu cabelo pintado de loiro. Inconscientemente, procura regressar à verdadeira Norma, uma mulher verdadeira, repleta de densidade psicológica, e longe da perfeição que forja perto dos holofotes. E quem é a verdadeira Norma Jeane? Provavelmente nunca saberemos, dado o cariz ficcional desta obra, que apenas revela um conjunto de impressões acerca da pessoa por detrás da fama. Dir-se-ia que a verdadeira Norma Jeane é a oscilação entre estas duas personalidades: uma alegre, confiante, leve, e a outra frágil, instável, insegura, reflexiva.

Blonde é um filme bastante particular por não ser um filme biográfico, isto é, por não ser um retrato objetivo de Marilyn Monroe e da sua carreira artística. Não é uma exposição acerca dos filmes que fez, de como esses filmes foram feitos, de como era a sua rotina ou de como fazia a sua maquilhagem. Baseado no romance ficcional Blonde (1999), de Joyce Carol Oates, este filme tentou ser a história de Norma Jeane por detrás da máscara de Marilyn Monroe: deixou de lado os factos para poder falar de pormenores íntimos, subjetivos, reais e/ou ficcionais.

Ana de Armas (Blade Runner 2049; Knives Out) transforma-se na menina dos olhos de Hollywood. O seu sotaque cubano é totalmente impercetível e o seu ser exala a Marilyn que o mundo conheceu. A atriz entrou na pele da personagem estudando os seus maneirismos, modos de fala e expressões faciais a partir de fotografias e gravações. Assim procurou entender a pressão sentida por detrás das câmaras. O produto final é uma mulher revoltada com o facto de ter de encarnar sempre personagens belas, superficiais, e tontas, contribuindo para formar junto do público uma visão incorreta das mulheres.

Frame do filme “Blonde”. Fotografia: Netflix

Não são raras as vezes que Marilyn/Norma Jeane nos emociona neste filme. A sua própria atmosfera deixa-nos apreensivos e nostálgicos enquanto acompanhamos a forma sentida como Marilyn pronuncia as suas deixas e a sua postura em palco e fotografias. Sabe posicionar-se, e esse saber posicionar-se explica o amor e o ódio que conquistou no público: sem saber, trouxe beleza ao mundo, o que é recriado nos planos de filmagem e na banda sonora que os acompanha. No entanto, por detrás desta faceta, encontra-se uma mulher culta, amante da literatura, do teatro e de Dostoiévski, desejosa de ser reconhecida pelo seu intelecto. No entanto, a sua essência é constantemente ignorada e reduzida àquilo que o público espera de um sex symbol: superficialidade.

Observando de perto a vida de Marilyn/Norma Jeane, verificamos que nada poderia estar mais longe de ser simples, linear ou vazio. De facto, as relações amorosas que vemos neste filme representam a sua instabilidade emocional e desequilíbrio, mas também a sua originalidade e o seu lado vanguardista. É o caso, por exemplo, da sua relação com os gémeos Charles “Cass” Chaplin Jr. e Edward Robinson Jr.. Este não é o tipo de relação que é colocado perante o olhar crítico do público todos os dias, mas tem um forte significado poético: enquanto os gémeos foram uma pessoa que se dividiu em duas, Norma Jeane é uma pessoa que contém múltiplas. Perante os gémeos, olha de frente para o seu verdadeiro eu e sente-se compreendida. Uma cena que sintetiza esta harmonia entre eles é aquela em que Norma está com os gémeos a contemplar a constelação Gemini numa praia, ouvindo-se de fundo a ilustrativa música de Nick Cave e Warren Ellis. É um momento poderoso, porque é como se a constelação Gemini e toda a banda sonora do filme resumissem melhor do que palavras aquilo que é Norma Jeane: uma miríade de personalidades, luz e sombra.

Uma outra relação digna de menção é a sua relação com Arthur Miller, cuja representação está a gerar um grande debate. Efetivamente, durante este casamento alguns acontecimentos revelam-se traumáticos tanto para Norma Jeane como para o espectador: um deles é uma gravidez em que o bebé, com voz frágil, pergunta à mãe se desta vez ela não o vai magoar. A voz do bebé, aliada a todo o sofrimento e visão de um aborto, é o equivalente a colocar o dedo numa ferida aberta.

São cenas ligadas a esta temática que estão a gerar controvérsia sobre o filme. A audiência está dividida: muitos aceitam esta storyline como uma mensagem pró-vida, e muitos sentem-se ofendidos por se usar a vida de Norma Jeane para se transmitir esta ideia, especialmente numa altura em que muitas mulheres estão a perder o direito ao aborto. Este é um dos pormenores mais sensíveis e subjetivos do filme, sendo discutível se um filme sobre a busca pela identidade de Norma Jeane, seria o mais indicado para discutir esta questão. A virtude desta cena seria, contudo, a sua grande carga emotiva, valor artístico, e o facto de demonstrar que o aborto será sempre um tema doloroso para qualquer mulher, qualquer que seja a sua decisão.

Apesar das controvérsias, um filme com força suficiente para provocar a indignação merece ser discutido. Talvez existam pormenores da história exageradamente romanceados, denotando perspetivas demasiado simplistas que no fim dificultam a distinção entre realidade e ficção. Contudo, sejam os factos reais ou ficcionais, uma coisa o filme conseguiu: representar o psicológico de uma mulher incompreendida através de sons, imagens, e sem usar grandes palavras ou diálogos complexos. Talvez essas metáforas sejam a resposta do enigma de Marilyn/Norma Jeane: elas são a mesma, e não podem ser explicadas num romance. Elas precisam de música, fotografia, e movimento,  porque têm de ser vistas e são demasiado reais para serem aprisionadas num livro. Por isso, é seguro dizer que estas duas personas são algo que ligamos sempre a Marilyn: cinema. Tudo não passa de uma história, onde a qualquer hora, as luzes se vão ter de apagar.

Artigo escrito por Margarida Inês Pereira

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