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Cultura

O meu amigo Ferrabrás e a importância das histórias

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Na rua Santo Ildefonso nº 225/229, minutos antes da apresentação, já o piso térreo se apresentava bem composto de um público de diversas gerações. As cores das ilustrações de Aurora Sant’Ana, licenciada em Design de Comunicação pela FBAUP, povoavam as paredes brancas da Galeria Geraldes da Silva. A dividir a área da exposição, havia materiais do processo, como esboços a grafite e a pastel e uma das maquetes iniciais do livro recém-publicado. Elaboradas em pastel seco sobre papel manteiga e sem recurso a fixador, as ilustrações foram expostas tendo em conta o diálogo das cores e do seu conteúdo, sem uma preocupação com a linha temporal da narrativa d’O meu amigo Ferrabrás. Entre pedras, campos, montanhas e sapos de várias cores, o ambiente visual da obra exposto na Galeria aguçou a imaginação e a curiosidade dos visitantes, futuros leitores e leitoras.

Breves minutos depois das 16h, Rui Vitorino Santos, ex-professor de Ilustração do escritor, da ilustradora e das designers (Aurora Sant’Ana, Luísa Coelho e Sara Brandão), tomou a palavra. Acompanhado por Rui Cerqueira Coelho, licenciado em Biologia pela FCUP e pós-graduado em Ilustração pela FBAUP, e por Aurora Sant’Ana, o designer batalhense não escondeu a emoção e a afeição pelo objeto-livro que lhe incumbia apresentar. Sem revelar a narrativa da obra, Rui Vitorino Santos lançou algumas ideias que marcaram o seu primeiro encontro com Ferrabrás, essa “voz da sapiência, alguém sem idade, talvez imortal, do tempo dos Gigantes como ele próprio nos diz, talvez um habitante já da Pangeia como algumas ilustrações sugerem”.

A partir de uma história sobre a amizade entre uma criança e o sapo Ferrabrás, esse “amigo invisível da humanidade”  – palavras do professor da FBAUP -, o livro coloca o leitor perante o tempo da infância, vivência comum à experiência humana, demonstrando a importância da curiosidade e da imaginação no nosso confronto com a complexidade do mundo. Oferece uma perspetiva inocente e genuína, típica dos primeiros anos de vida e deixa o leitor mergulhar na fascinante experiência de olhar as coisas pela primeira vez.  Os pássaros, por exemplo, surgem como “reticências escritas no céu”.

Da voz e da experiência individual do narrador, ressoam os ecos e as vozes das ondas, das cascatas e dos pássaros. Todos esses elementos da natureza são igualmente protagonistas, contam histórias, memórias e “pesados” segredos essenciais ao entendimento do mundo. Sem a presença de um antropomorfismo simplista, Ferrabrás, esse “amigo do sol” que pede palavras emprestadas ao mar, possui uma identidade plural, confundindo-se com a sabedoria das montanhas e dos rios.

Ao chamar a atenção para a importância da interajuda e para a intrínseca interdependência dos seres, o livro apela ao amor à diferença, celebrando uma perspetiva pós-humana. Trata-se de uma alegoria para tudo o que pensamos separado do humano, mas que lhe é absolutamente essencial.

Entre a realidade e a ficção, a obra imerge o leitor “no interior do pensamento das personagens”, cujas vozes contrastam com as paisagens despovoadas e silenciosas das ilustrações, tal como notou o professor da FBAUP. Ao apontar para as várias dimensões da obra da Truz Truz, isto é, o texto, as ilustrações e o suporte, Rui Vitorino chamou a atenção para o potencial intermedial da obra. Parafraseando as suas palavras, este é um livro que se lê, se vê e se sente, porque o texto, a imagem e o suporte se alimentam uns aos outros, abrindo novas possibilidades interpretativas para cada um deles.

Se, nesta obra, as diferentes artes deixam de ser separáveis e independentes passando a funcionar em conjunto, unidas neste objeto-livro, também as histórias “são de memórias individuais que facilmente se tornam coletivas”, como afirmou Rui Vitorino. Desde o mistério da origem à importância da criação e da memória, a obra convida a refletir sobre o “sentido de pertença”, “o valor da empatia” e “a necessidade de recomeçar para evoluir”.

“Todos gostamos de histórias, somos feitos delas e esperamos que um dia façamos parte de algumas, nem que seja uma ideia fugaz numa ideia contada”.  A afirmação é de Rui Vitorino Santos a propósito do slogan da Truz Truz (“Somos Histórias”), bem espelhado na obra recém-publicada.

Somos fruto de histórias alheias, perdidas, inventadas e herdadas. Precisamos delas para manter a nossa ligação ao mundo e para preservar o nosso lugar de pertença, apesar do mistério da nossa origem e da ameaça do esquecimento, uma vez que “somos todos baús de tesouros esquecidos”, tal como diz algures o narrador d’O meu amigo Ferrabrás.

Assim, a obra relembra o leitor que, para nomear o mundo, precisa de o olhar e de ser olhado por ele. Embora destaque a importância da escuta e do silêncio, a palavra surge como elemento fundamental para a reconciliação com a efemeridade e com a finitude. A palavra, enquanto depósito de memória, abre a possibilidade de criar, de ser sem fronteiras, de deixar um rasto, porque diante dela somos nós o elemento mais frágil.

No dia 22 de outubro, a partir das 16h, na Oficina com Pinta, em Viana do Castelo, ocorrerá a segunda exposição das ilustrações d’O meu amigo Ferrabrás. A obra será apresentada, às 17h, na cidade do escritor Rui Cerqueira Coelho e da designer Luísa Coelho, por Nelma Nunes, professora de expressão dramática e coordenadora da Biblioteca da Escola Eb.2,3 Frei Bartolomeu Dos Mártires.

O próximo livro da Truz Truz tem lançamento previsto para dezembro de 2022 e explorará os vínculos entre o processo criativo e as estações do ano.


Artigo da autoria de Mafalda Pereira

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