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Cultura

REMNA: “É importante que sejamos mais do que meros espectadores das nossas vidas”

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Gabu foi um reino criado no século XIII, mas que teve o seu apogeu entre 1537 e 1867, na África Ocidental. Estendeu-se por trinta províncias, desde a Região alta da Gâmbia passando pelo país de Futaa Djalo e Badyaranke até ao rio “Casamance” e atingindo o Rio “Geba”, que fica no coração da atual Guiné-Bissau, com passagem ainda por “Saloum”, o atual Senegal.

Faz, portanto, todo o sentido que “um império criado pela dissidência de um homem, o Tenente Tiramagan, que recusou obedecer ao seu rei (‘Mansa’)”, inspire o EP de alguém que considera ser um “rebelde” e que nunca se conformou “com o que é feito em termos musicais e filosóficos”, tendo sido sempre fiel a si mesmo.

 GAABU é, assim, o mais recente EP de Remna, artista que considera a sua vivência “um bocadinho fora da norma” e que quis que “o conceito [do EP] fosse uma fotografia daquilo que ele é”. Teve também como objetivo mostrar que a história de África vai muito para além da escravatura ou do colonialismo, destacando que, como qualquer outro continente, tem um passado com “impérios, reis, guerras, economia e política”.

O cantor explica que o reino de GABU era “um império guerreiro, que tinha uma estrutura política bem definida e organização própria” e que quando “através das suas ideias e filosofias, um homem decide dizer não”, criando “o seu próprio Estado Soberano”, surge a motivação para nos inspirar “enquanto artistas ou atores culturais a lutar pelos nossos ideais”, não esquecendo nunca a “responsabilidade de ter uma plataforma de visibilidade”.

Ao longo da nossa conversa, várias vezes citou Amílcar Cabral, político e ativista guineense que disse: “Estamos aqui para ser a força que movimenta a mudança que queremos ser”. A rebelião apresenta-se como ponto de partida e de chegada, visto que Remna considera importante que sejamos mais do que meros espectadores das nossas vidas e que façamos por criar uma mudança económica, cultural e histórica, sobretudo no que ao continente africano diz respeito.

Fala-nos ainda de Fela Kuti, outra das suas referências, afirmando que este cantor nigeriano “abriu as portas para que as pessoas criassem os seus próprios Estados Soberanos, o que, no caso de Fela Kuti, significou reger a sua própria casa como bem entendeu”. “Music is a Weapon” foi a principal filosofia de vida deste artista.

Contudo, talvez a pessoa mais presente na sua arte, direta ou indiretamente, seja o pai de Remna, o poeta e ativista José Carlos Schwarz. Em GAABU foram usados dois poemas do pai: “Si Bu Sta Dianti na Luta” (Se estás de frente à luta) é recitado no interlúdio, “Fémia”, pela filha de Remna, que “apesar de nunca ter conhecido o avô, conhece-o através das obras e das histórias que o seu pai e outros contam”, como se fosse uma “continuação geracional”. Em “Fémia”, também ouvimos a sua mulher, Dulcineia, a declamar um dos últimos poemas de amor que José Carlos escreveu para a mãe de Remna.

Fala ainda do livro que a mãe, que “conheceu o pai com um livro na mão”, está a escrever sobre a história de amor entre os dois, porque “até agora só conhecíamos o lado mais revolucionário e mais rebelde deste homem”. Para quem acha que amor e luta estão em lados opostos, José Carlos Schwartz prova exatamente o contrário: muito daquilo por que lutou foi por ser um “homem apaixonado, apaixonado pela terra dele, pela sua cultura…”. Do pai, o artista destaca ainda o seu enorme “conhecimento sobre o mundo” e o “conseguir falar com pessoas de todas as camadas sociais”. 

Remna nasceu e foi criado no Senegal, mas viajou toda a vida. Tendo África como inspiração principal, o músico, que se considera “compositor compulsivo”, queria, sobretudo, criar uma história, “um disco que se pudesse ouvir e que fizesse com que as pessoas ‘viajassem’ ”. Para GAABU, procurou reunir “músicas que fizessem sentido na criação de um conceito sónico e de uma experiência espiritual e intelectual”.

Este EP é também caracterizado pela representação de vários países do continente africano, na tentativa de ajudar a quebrar as barreiras linguísticas e culturais, através das colaborações com TAAL BI e NIX do Senegal, em “Gaïnde” e “No reason to hurt you”, respetivamente, ou ainda com Ellàh, de Cabo Verde, em “Dance n’praise you”. Um dos objetivos foi mostrar que a música ajuda na comunicação entre diferentes povos e línguas, transmitindo a noção de que há sentimentos que os unem, independentemente daquilo que os separa.

Vencedor do Prémio Revelação do festival francês, “Printemps de Bourges”, em 2005, Remna foi também um dos participantes do Festival “South by Southwest”, no Texas, em 2018, promovido por Deedo.

Em outubro de 2021, produziu ainda e compôs, em colaboração com Poundo, a banda sonora da série “Manjak”, que recebeu o prémio “Ubunto d’Or” para melhor série televisiva. Diz ter tido muita “liberdade criativa”, tendo apenas a indicação de “basearem-se em África, mas estarem abertos a outros espaços geográficos”, o que o leva a crer que “haverá cada vez mais produções feitas no continente africano enviadas para o mundo, criando, assim, pontes”.

A parte visual é imprescindível para Remna que, há uns anos, teve uma conversa com um artista plástico senegalês que lhe disse que a música não é só sonora, reunindo também a componente da imagem. Em palco tem a preocupação de abrir os sentidos daqueles que o vêem, conferindo uma “festa visual”, que também ajuda a passar a mensagem das músicas. A apresentação de GAABU no Youtube, através de imagens e desenhos, demonstra exatamente isso.

Para o futuro do seu continente, o músico prevê uma “dinâmica sociocultural muito mais afirmada e descomplexada”, por lá se viver um momento em que “novos líderes africanos estão a levantar-se e a criar organizações, ou seja, a criar uma dinâmica afro-centrista, uma revalorização do continente, que leve ao respeito, entendimento e visibilidade.”

A título pessoal, tem já uma série de concertos agendados em Portugal e em França, encontrando-se em negociações para a criação da banda sonora de outro filme de um realizador da Guiné-Bissau, com produção francesa, enquanto continua a fazer a promoção de GAABU.

Este EP é, indubitavelmente, uma celebração do povo africano e de toda a sua riqueza cultural e histórica ao longo dos séculos. Citando Remna (que por sua vez citava Amílcar Cabral),  “dizer ‘não’ é começar a criar histórias”, e esta história reflete o percurso, vida e ideais de um artista ímpar.

Artigo escrito por Francisca Costa