Cultura
“Fado Alexandrino”: Da Guerra à Revolução
Com a celebração dos 50 anos da revolução do 25 de abril, o Teatro Nacional São João (TNSJ) apresenta uma nova produção própria. O encenador Nuno Cardoso dramatiza o romance “Fado Alexandrino” de António Lobo Antunes. Estreado a 5 de abril, estará em cena no TNSJ até ao dia 28 de abril.
A peça, à imagem do livro, é contada por quatro personagens, alguns anos depois de terem regressado a Portugal do seu serviço na Guerra Colonial. É recontada por eles mesmos, enquanto partilham uma refeição. Com o uso constante de analepses, temos acesso às vidas das quatro personagens antes, durante, e depois da sua participação na Guerra. Vemos o que tiveram de fazer para sobreviver, as atrocidades por eles cometidas, e como tudo isto os marcou.
A falta de apoio quando regressaram a Portugal. As falhas do sistema de saúde da altura. A opressão exercida pelo estado e pela polícia política – tudo isto é retratado através das histórias de declínio que os protagonistas partilham. Como o Tenente-Coronel Artur Esteves, mantido no escuro em relação à saúde da sua esposa, que regressa a Portugal sem saber da sua morte. Ou o Soldado Abílio, que, voltando da guerra para uma vida com dificuldades financeiras, e sem apoio, se prostitui. Ou ainda o Tenente Celestino, que, por defender a causa socialista, é torturado pela PIDE.
Sendo fiel ao livro em que se baseou, Nuno Cardoso apresenta-nos esta peça de forma não linear. Oscila constantemente entre várias instâncias do passado, e do presente, sem grande explicação ou contexto. Todos estes “saltos” temporais e espaciais podem parecer tornar a peça confusa, mas acabam por beneficiá-la. Esta sobrecarga de informação ajuda-nos a entrar naquele mundo e a entender o estado de espírito dos personagens. Ilustra a sensação de alienação e desespero sentidas, presos, eles próprios, entre dois tempos: um passado que os marcou para sempre, e um presente que lhes nega qualquer honra ou triunfalismo prometidos.
“Fado Alexandrino” não nos oferece a esperada catarse, pois não se resigna a celebrar a revolução. Obriga-nos a refletir, transporta-nos para vários espaços e tempos, e em nenhum deles temos um “herói” pelo qual possamos torcer.Talvez a personagem que mais se aproxima dessa descrição seja o Tenente Celestino – parte de uma organização socialista secreta. Vemos, através dele, o exemplo mais evidente da opressão exercida pelo regime. O “espírito” que sobreviveu à guerra, foi eventualmente quebrado pela PIDE. E o jovem, uma vez idealista e revolucionário, acaba por envelhecer e perder a fé em qualquer causa.
Nenhum dos protagonistas sai ileso do profundo e negativo efeito da guerra. Como o Tenente-Coronel Artur Esteves, que é incapaz de lidar com a culpa das suas ações na guerra.
António Lobo Antunes e Nuno Cardoso deixam-nos com esta realização amarga, afastando-se da perspetiva mais comum, a da celebração da revolução. Vemo-la, em vez disso, através da perspetiva de quatro homens, esgotados e destruídos pela guerra e pelo regime. Com o Tenente-Coronel, chegamos a ver até a indiferença em relação ao lado revolucionário ou ao lado do regime, nas semanas antes do 25 de abril. Vemos antes a futilidade e desinteresse com que ele encara a decisão, querendo apenas manter a sua posição e assegurar o seu ordenado.
A interpretação é de Ana Brandão, António Afonso Parra, Joana Carvalho, Jorge Mota, Patrícia Queirós, Lisa Reis, Paulo Freixinho, Pedro Frias, Pedro Almendra, Telma Cardoso, Sérgio Sá Cunha e Roldy Harrys, sendo as suas atuações absolutamente fulcrais para passar a mensagem da peça.
O cenário simples, como no livro, é um restaurante. O mais fora do comum no cenário é a adição da projeção de imagens e vídeos ao longo da peça. Algumas vezes vão sendo projetados pequenos filmes que se relacionam com a história, quase sempre de natureza violenta, servindo para ilustrar os acontecimentos passados. Este acréscimo encaixa-se perfeitamente no teatro, pois, tal como com os “saltos” na narrativa, ajuda a sobrecarregar a audiência com informação.
Torna-se evidente o porquê de Nuno Cardoso ter dito que a obra de António Lobo Antunes “não é um livro celebratório”: a peça ilustra o poder corruptivo do regime e da PIDE, o ódio e como este se espalha quase incontrolavelmente.
“Um livro tem de ser o machado que rompe o oceano congelado que habita dentro de nós.”
– Franz Kafka
Esta peça teatral e livro não têm o propósito de alegrar e celebrar, mas sim de relembrar e não deixar esquecer o meio século de ditadura. Não deixar esquecer o porquê de sairmos todos os anos à rua com cravos na mão.
“Fado Alexandrino” não permite que ocultemos nas nossas memórias o rasto de dor e destruição deixado pelos Portugueses em África. Deixa, no entanto, também presentes o remorso e a culpa quase insuportáveis, e a impossibilidade dos combatentes de alguma vez voltarem a ter uma vida normal. Celebrar a revolução de 25 de Abril sem mencionar tudo isto, as atrocidades, as mortes, as violações, a tortura, é esquecer todo um meio século de história e de pessoas que nele viveram.
Por Guilherme Vieira da Silva
Mafalda Martins
26/04/2024 at 17:03
Como alguém familiarizado com a obra, posso afirmar que este artigo captura fielmente a essência do “Fado Alexandrino”. É igualmente gratificante saber que Nuno Cardoso decidiu adaptar para palco um livro de tamanha importância histórica; bendita seja a sua recolocação como diretor artístico do Teatro Nacional!