Cultura

“NÓS, OS CRIADORES, NÃO VIVEMOS ACOMODADOS A COISA NENHUMA”

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“Ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometermos”. O que acha que Carlos Drummond de Andrade quis dizer com esta frase?

Ir ao teatro é como ir à vida sem nos comprometermos, porque não estamos na vida, estamos na representação da vida e, como tal, não nos comprometemos com a vida. Contudo, o que eu acho que ele quer dizer é que o teatro nos ensina a viver melhor, porque o ato de viver é um ato de comprometimento connosco e com os outros. Não é por acaso que uma das primeiras coisas que os nossos alunos aprendem na escola é como se relacionarem com os outros e consigo próprios, porque sendo o teatro uma espécie de escola da vida, eu acho que é isso que ele quer dizer.

 

Começou por frequentar um curso de Filosofia, mas optou pela carreira de ator. Que relação estabelece entre as duas áreas?

Eu acho que o teatro é uma panóplia de coisas e, nesse sentido, nós podemos no teatro aprender tudo de alguma maneira. O facto de ter andado em filosofia tem a ver com uma série de vicissitudes da época logo a seguir ao 25 de abril. Sabe que não havia, por exemplo, o curso de Direito no Porto. Eu gostaria muito de ter tirado Direito, mas depois acabei por me inscrever num curso de Filosofia. A verdade é que sou apanhado no turbilhão da revolução do 25 de abril e os meus interesses naquele momento viraram-se para a prática de uma série de coisas. Nessa perspectiva, eu comecei a aprender mais com a rua do que com a escola e comecei a perceber que a minha vida deveria seguir um outro caminho. Acabei por fazer o primeiro ano, mas depois decidi abandonar completamente o curso e dedicar-me ao teatro e à vida profissional.

 

Tem vestido o papel de vilão em vários projetos artísticos. Considera que a imagem de mau da fita lhe assenta melhor do que a de herói?

Muitos dos meus vilões são heróis, à maneira deles como é evidente (risos). Não, acho que os personagens com caráter me assentam melhor do que os personagens sem caráter, independentemente de o caráter ser maléfico ou benéfico. Acho que tem mais a ver, de facto, com o caráter de mim próprio ou, se quiser, com aquilo que eu entrego às personagens do ponto de vista do seu caráter do que propriamente aquilo que elas são. Ou seja, eu acho que para representar um Hitler nós não temos de ser nazis ou fascistas, mas temos de ter uma grande consciência sobre aquilo que representamos e devemos ter uma opinião sobre aquilo que fazemos. É evidente que, mesmo na televisão, os meus personagens que têm um caráter mau são aqueles que, de alguma maneira, mostram à sociedade alguns dos aspetos criticáveis nas relações humanas. Fazer um homem que bate sistematicamente na mulher não me parece que seja algo de muito interessante na vida, mas parece que é algo muito interessante na ficção exatamente para chamar à atenção daquilo que acontece na vida. Nessa perspetiva, é preciso sobre isso ter uma opinião e o facto de termos uma opinião leva-nos a representar essas situações de uma maneira tão forte que elas podem incomodar quem nos está a ver e essa é, em última análise, a função do nosso trabalho.

 

Tem alguma superstição ou realiza algum ritual antes de entrar em cena, seja no teatro ou na televisão?

Tudo o que eu faço no dia da estreia passo a fazer durante a carreira toda de um espetáculo, seja o que for. Se eu, porventura, antes de entrar em cena, tropeçar nalguma coisa, eu terei que tropeçar todos os dias. Tenho essa espécie de superstição, porque sabendo eu que os espetáculos todos os dias são diferentes, para eles serem diferentes é importante que eu cumpra determinados rituais, uma vez que esses rituais permitem que eu esteja disponível para fazer um espetáculo diferente todos os dias. Às vezes, há coisas estranhas como eu passar por um colega nos bastidores e dizer-lhe alguma coisa e depois dizer-lhe exatamente a mesma coisa durante dois meses de carreira e ele não percebe, mas para mim faz parte daquele ritual (risos).

 

Surge, por vezes, no senso comum a ideia de que as pessoas ligadas ao setor cultural são subsídio-dependentes. Concorda com esta ideia?

De todo não. Se nós pensarmos que os subsídios são atribuídos aos públicos e não aos criadores, se pensarmos que o espetáculo de teatro tem um determinado custo e nós para cobrarmos esse custo temos de levar um x preço ao espectador, nós aí imediatamente percebemos que o facto de o Estado apoiar esta estrutura de produção, está a apoiar o próprio espectador para que o seu bilhete seja mais barato. Por outro lado, se pensarmos no que os desgraçados dos profissionais das artes ganham em Portugal, percebemos rapidamente que essa ideia não faz sentido. Nós somos uns miseráveis que trabalhamos por amor à causa, porque temos muito prazer no que fazemos, porque temos a partilhar com os outros aquele que é o nosso pensamento sobre a vida. Só isso bastaria para acharmos esse discurso estúpido. Há políticos que têm esse discurso, mas, infelizmente, há muito político estúpido.

 

Com o clima de austeridade que asfixia o país como é que fica o setor das artes e cultura?

Se fossemos todos inteligentes, teríamos percebido já há muito tempo que o setor das artes e cultura é um setor que gera grande riqueza. Há um estudo que diz que, pelo menos, 3,6% do PIB é gerado neste setor em Portugal. Também basta pensarmos que, quando se produz um espectáculo de teatro, se dá trabalho a pintores, a costureiros, a atores, a músicos, a desenhadores, sem ser preciso referir que antes de as pessoas irem ao espectáculo, talvez jantam no restaurante e tudo isto é gerador de riqueza. Por isso, este é um setor muito dinâmico do ponto de vista da Economia e poderíamos começar a pensar que este seria um setor a olhar com outros olhos em Portugal.

 

Em termos culturais, sente que há um desequilíbrio entre Lisboa e Porto?

Sinto que há um desequilíbrio entre Lisboa e Porto a todos os níveis. Não é só no setor da cultura. O país é muito inclinado, infelizmente. Mas, mais do que sentir em relação ao Porto e Lisboa, sinto em relação ao litoral e ao interior do país. Parece que o interior não existe. Parece que não somos um país. Parece que somos uma linha de 300 km de largura. É absurdo que, hoje com as vias de comunicação existentes, o país não seja uno e que se retirem tribunais e escolas do interior, que se desertifique cada vez mais e de uma forma assertiva. É preciso que as pessoas comecem a abrir os olhos e que reivindiquem o seu espaço de vivência, como é natural que o façam.

 

Tem lutado durante longos anos pelo restauro do Palacete do Conde do Bolhão. Que significado tem para si este monumento?

O Palacete do Conde do Bolhão é um palacete que estava completamente degradado e abandonado, um palacete que nós tentamos revitalizar, não só do ponto de vista físico como agora do ponto de vista humano, indo, a partir do próximo ano, habitá-lo e pô-lo ao serviço dos cidadãos do Porto. Isto tem muito significado, não só para mim, mas para a própria cidade. Primeiro, é algo que está no centro da cidade que está desertificada e que vai contribuir, de alguma maneira, para que aquela zona da cidade passe a ser mais habitada. É, por outro lado, um espaço que vai ser entregue ou que é pertença de uma estrutura de produção artística, o que também tem algum significado. É importante dentro da ideia de situarmos todo o nosso trabalho em zonas de criação que podem ser gratificantes para a relação que estabelecemos com os públicos. Eu acho que é um trabalho que precisa de ser feito. Temos lutado muito por aquele espaço, por aquilo que significa para todos nós e para uma ideia que temos de cultura e educação. No fundo, estamos a devolver um património à cidade, mas a devolvê-lo com vida, porque vamos ter lá uma escola e uma companhia de teatro.

 

É uma meta alcançada ou é só um começo?

Esta é uma meta que ficará alcançada. Os próximos desafios terão de ser outros. É evidente que temos de lançar novos desafios a nós próprios para não pararmos. Pararmos, neste sentido, seria acomodarmo-nos a alguma coisa e, como sabe, nós, os criadores, não vivemos acomodados a coisa nenhuma. Vivemos sempre no anseio de tentar atingir na prática aquilo que na nossa cabeça está sempre além da nossa prática. Portanto, este desafio está superado, vamos lançar outro. Havemos de encontrar outro qualquer.

 

Na sua vida, que objetivos ainda não foram cumpridos, mas que gostaria de cumprir algum dia?

Não sei. Os criadores vivem de anseios quando percebem as suas limitações, quando percebem que na prática são mais limitados do que na sua imaginação. Há sempre coisas que ficam por fazer e que nunca mais vão ser feitas. Eu nunca mais irei fazer o Hamlet. Mas há sempre permanentes desafios que nós nos lançamos, por isso é que eu lhe dizia que, quando o edifício do bolhão estiver pronto e estiver lá a companhia há um objetivo que foi cumprido, certo, mas há outros para desenvolver a partir dali e que irão ter a outros caminhos. No fundo, andamos sempre à procura de qualquer coisa que nunca nos preenche plenamente. Por exemplo, no próximo ano, há um projeto que queremos fazer com a Palestina e que vamos fazer com a Palestina e que, evidentemente, nos enche de anseio e inquietação para que ele tenha bom resultado. E é mais um desafio que lançamos a nós próprios, mas nós havemos de o fazer e, depois de ele estar feito, havemos de partir para outra. Há sempre pequenos desafios que nos lançamos, porque não sabemos viver de outra maneira.

 

Se tivesse que se definir numa só palavra, que palavra escolheria?

Inquietação. Acho que é uma palavra boa. Eu ando sempre muito inquieto (risos).

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