Crítica

Todo o Tempo Que Temos – Verso e Reverso da Mesma Moeda

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Num pano de fundo londrino, as superestrelas Florence Pugh e Andrew Garfield dão expressão a Almut e Tobias, a quem o destino transformou a maratona num sprint. Por João Pedro Pereira.

Ela uma chefe de cozinha em ascensão, ele um representante da Weetabix e recém-divorciado. Um acidente de carro que juntou o leite aos cereais e que, sadicamente, profetizou uma luta contra o tempo, como quem guia pela estrada horas a fio até se despistar. Pelo menos, a sina foi anunciada, e é na ressaca dessa notícia que o diretor John Crowley aponta a lupa para aquelas que foram as curvas e contracurvas do passeio que fizeram, com o combustível que tinham.

Ao pensar neste romance, dificilmente poderíamos imaginar que nos fosse servida uma refeição insatisfatória. Com o realizador de ‘A Rapaz’ e ‘Brooklyn’ a renovar a parceria junto do seu bem conhecido intérprete, Andrew Garfield, a quem soma a nomeada ao Óscar de melhor atriz, Florence Pugh, e a monitorizar o argumento do cada vez mais reconhecido Nick Payne, não se aguardava algo menos de que um menu planeado ao extremo, requintado por tudo aquilo que a procriação da paixão com o ‘know-how’ fossem capazes de conceber.

Não obstante, foi com um sorriso ligeiramente amarelo que abandonei o restaurante, como quem reconhece ao prato o seu devido mérito, mas a quem fica a sensação de que poderia ter ficado mais pleno. Porque sim, esta trama contempla diversos aspetos positivos. Desde logo, a decisão lúcida de procurar incessantemente preencher a tela com os rostos invariavelmente arrebatadores da dupla principal. É que, havendo ao dispor gemas desta riqueza, elas imploram para sobressair entre as claras. Um passo simples e instantaneamente benéfico para a qualidade do drama, embora seja, por vezes, desconsiderado.

Também do ponto de vista técnico, a longa-metragem enche-nos a barriga de planos esmeradamente idealizados e executados, que realmente acrescentam à narrativa que se vai desmistificando, seja pelo contraste das luzes, ou pelos close-ups perspicazes, que nos acompanham ao longo de todo o enredo, engrandecendo, em parte, a experiência do espectador.

No entanto, se por um lado considero a cinematografia um atributo, devo dizer que, por outro, foi ela que me chamou à atenção sobre o bichinho da automaticidade e rotina. Dei por mim a refletir que, por mais que não me desprendesse da digressão apresentada e nela investisse as elevadas expectativas de vir a ser esmagado pela suas mudanças de direção, não sentia a substancialidade que nos arrebata nos ‘grandes cozinhados’

A razão? Bom, concluí que estava perante uma versão light de um alimento que, se não se preocupasse com isso, seria infinitamente mais saboroso. É que, pior do que escrever um texto ‘feijão com arroz’ em que o motor da trama cozinha, é não lhe conferir o desenvolvimento necessário para que sejamos brindados com um bom estudo de personagem. A gema queria, podia e devia ter sido ótima, mas foi consumida pelas claras, em virtude de uma incessante cadeia de idas e vindas na ordem cronológica dos eventos.

Eu não sei se consideraram que brincar com a máquina do tempo iria acrescentar ao cenário retratado, ou se pretenderam simplesmente dinamizar o argumento, embora se tivesse de arriscar, iria para a segunda. Isto porque, de facto, alcançaram esta última pretensão, na medida em que a montagem nos força a não tirar os olhos do grande ecrã para que acompanhemos a avalanche de informação que nos é transmitida desordenadamente. 

O problema é que isto se revela uma verdadeira faca de dois gumes, que acaba por expor a simplicidade do que nos é contado e só em poucas ocasiões nos presenteia com a que deveria, da minha perspetiva, ser a sua prioridade – o talento da dupla protagonista e o enfoque no ponto basilar da vida do casal, cuja vida de um dos membros está dependente das suas escolhas. Devido à sequência ininterrupta de novos acontecimentos, perde-se um pouco o fio do seu núcleo, que deixa a sensação de pouco aprofundamento e falta de organicidade. Isto é, o relacionamento tem tantos contornos e nuances, que poucas, se é que alguma vez, chega a conhecer a merecida devoção, o que por sua vez circunscreve o impacto que a cinematografia poderia ter, na medida em que o seu esforço para nos agarrar acaba por ter a consequência paradoxal de nos fazer captar a artificialidade do plot.

Assim, a sensação final é, em último caso, de algum vazio, quebrado pelos poucos momentos de deleite com as performances estonteantes. Garfield nasceu com o coração nas mãos, e é quando mais se lhe exige que seja expressivo, dramático e apaixonado que reluz com maior intensidade. Pugh entrega-se literalmente de corpo e alma ao papel, mas considero que foi a mais traída pelos problemas da película. Fica na retina o seu esforço e alguns apontamentos de rasgo (os que lhe foram concedidos). Por fim, Lee Braithwaite, uma completa desconhecida na indústria, também faz bom uso do seu (pouco) tempo de tela, sendo a única personagem a lograr algum destaque entre o duo protagonista.

Isto posto, ‘Todo o Tempo Que Temos’ é uma grande oportunidade desperdiçada em média escala, numa aposta que se revela comprometedora de uma maior intimidade, ao priorizar o dinamismo em relação à minúcia e cuidado com o tema abordado, que, mesmo não oferecendo uma assinalável multiplicidade de camadas, poderia teria sido transcendental ao abrigo do imensurável virtuosismo dos intérpretes. Apesar disso, estes ainda fazem valer a pena o preço do bilhete.

Artigo escrito por João Pedro Pereira

Gostaria ainda de partilhar com aqueles que estejam a ler a enorme gratidão que sinto para com a Editoria, da qual agora me despeço. Entre altos e baixos, eu vi o caminho.

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