Artigo de Opinião

REI MORTO, NENHUM REPOSTO

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Atenção poetas, atenção leitores: a poesia portuguesa é uma espécie em vias de extinção. Desapareceu ontem o nosso enorme Herberto Hélder – génio incontornável da poesia em língua portuguesa. Para além de chorar a sua morte, de lembrar o mito que o envolveu ou os grandiosos poemas que nos deixou, penso que uma boa forma de o homenagear é refletir sobre como é cada vez mais difícil fazer a poesia sobreviver nos nossos dias.

Não quero com isto dizer que não haja bons poetas portugueses a escrever na atualidade, mas com que condições? Numa sociedade altamente economicista, a cultura e a arte passaram para um plano invisível: os nossos poetas, os nossos atores, os nossos artistas morrem de fome. Trabalham em cadeias de supermercados, não têm com o que pagar as contas ao fim do mês. Como podemos criar uma geração de poetas como foi a de Herberto, Sophia, Ruy Belo, Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, nesta conjuntura de crise, numa época em que os valores e as prioridades dos órgãos de poder surgem invertidos? Como incentivar a produção poética séria e de qualidade, se nem dignidade há para oferecer aos artistas?

Na Nota do Júri que organizou este ano o “Anuário de Poesia de Autores Não Publicados” da Assírio & Alvim, pode ler-se: «Recebemos, no prazo regulamentar que foi definido para esta edição, 2154 poemas enviados por 223 autores provenientes de todo o mundo lusófono (…). A leitura destes poemas revelou, com pouquíssimas excepções, um imaginário poético débil mas, mais do que isso, revelador de um cenário preocupante e que, já noutras ocasiões, tem vindo a ser abordado: a constatação de que muitos daqueles que escrevem poesia não são dela leitores assíduos, como se a sua escrita pudesse depender, única e exclusivamente, de uma qualquer inspiração.»

Perante isto, penso que é importante refletir sobre o porquê da poesia se encontrar tão longe das pessoas. Na época em que a televisão se tornou simplesmente uma caixa de luz e cabos, em que há jornais que se tornam populares pela publicação de lixo, pela prostituição de conteúdos, em que a estupidificação do indivíduo é quase um imperativo em que os investimentos são canalizados sempre para os mesmos destinos – aqueles que aparentemente geram “riqueza direta” – é muito difícil fazer circular livremente a arte. A verdadeira arte: aquela que nos demora, que nos comove, que nos inquieta.

Andamos a esquecer o exemplo de Herberto Hélder: está-nos a faltar a coragem de fazer diferente. Se este caminho nos está a levar para um assustadoramente silencioso vazio artístico, temos de ter a coragem de mudar o que existe. Temos de investir na cultura, no conhecimento, na arte – a nível pessoal e comunitário.

Que a genialidade e a teimosia que caracterizaram o trabalho poético de Herberto nos inspirem a lutar por um país melhor, no qual haja cada vez mais espaço para a dignificação do que realmente importa. Que a sua herança permita à nossa geração, mais tarde, poder responder afirmativamente à pergunta grega: “Tinha paixão?”

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