Cultura
“TODOS OS DIAS TÊM DE SER DIAS MUNDIAIS DO TEATRO”
Cada vez mais os artistas se queixam que a arte e a cultura estão a ser esquecidas, aliás, atrevo-me a dizer, negligenciadas. Concorda?
A cultura e a arte estão, claramente, a ser negligenciadas. Aliás, o teatro, como um dos setores da arte tão ligado à vida, reflete exatamente o que está a acontecer no país. A verdade é que as estruturas teatrais portuguesas, quer as companhias, quer os grandes teatros municipais e nacionais, estão subfinanciados. Se já o estavam antes, agora, com a crise, estão numa situação de ainda maior dificuldade. Algumas estruturas estão a trabalhar só para sobreviver. Para além de ter deixado de existir um Ministério da Cultura, deixou até de haver uma Secretaria de Estado, existe apenas um Secretário de Estado da Cultura. Isto só pode significar que este Governo, estas pessoas que estão agora no governo de Portugal não têm qualquer consideração pela arte nem pela cultura nem para o que representam para o ser humano, para a sua qualidade de vida, para o seu desenvolvimento e contribuição para que sejamos todos cidadãos melhores. É, para mim, tão importante quanto a saúde e a educação. Se já fazem cortes brutais na saúde e na educação, a cultura até estorva. Eles não gostam muito que haja gente informada, culta, interessada pelo que se passa à sua volta. Mais do que não gostarem, para eles até é um problema.
Acha que ainda assim Portugal é um país enraizado na cultura do espetáculo como o era, por exemplo, no século XIX?
Sim, eu acho que sim. É evidente que os públicos se criam a partir da altura em que se constroem habituações, isto é, a partir da altura que se possibilita aos públicos que vejam habitualmente espetáculos de determinado tipo. Por exemplo, não havia público para o novo circo, até é uma coisa de que se fala há muito pouco tempo, mas construiu-se um público de novo circo. Assim que deixou de haver programação regular de novo circo, esse público desapareceu. Não havia um público no Porto para arte contemporânea e, actualmente, o museu de Serralves é o museu com mais visitas a nível nacional. Tem de haver ações de sensibilização, serviços educativos, etc., no sentido de se conseguir públicos para as novas propostas artísticas que vão surgindo. Isto é uma tarefa que cabe aos programadores, às direções artísticas das diversas estruturas, companhias, teatros, museus, etc. Havendo esse trabalho, público não falta. Eu dou dois exemplos: o Teatro Nacional São João, nestes primeiros meses do ano, tem tido uma frequência de público bastante razoável, mesmo considerando a crise e mesmo considerando que há menos gente a ir ao cinema, ao teatro, etc., tem tido salas compostas, praticamente cheias, o que é um indicativo muito interessante. Por outro lado, temos um ciclo de cinema do Ingmar Bergman, a decorrer no Campo Alegre, com salas completamente esgotadas. Ora, isto significa que o público do Porto está ávido por ver um determinado tipo de cinema que não o cinema pipoca. O cinema pipoca tem o seu público, há sempre gente que gosta do cinema americano, das aventuras ou das comédias românticas, seja o que for, tem o seu público. Mas tem de haver uma ideia de política cultural para a cidade e para o país. Não, não existe só cinema pipoca, não existe só La Feria, com todo o respeito que eu tenho por ele enquanto criador, não existe só música tipo Festival da Canção. Existem outras coisas e há público para essas mesmas coisas, mas é preciso descobri-lo, ir ao encontro dele e, principalmente, fazer programações na cidade que tenham como objetivo a sua conquista e fidelização e isso só é possível se houver continuidade de programação e de apresentação desse tipo de propostas.
Qual a importância de um dia como este, como o Dia Mundial do Teatro, para captar os públicos para as artes do espetáculo?
O Dia Mundial do Teatro contribui para a captação de público tendo em conta que é um dia em que se fala mais de teatro, nomeadamente na comunicação social. Aliás, estes dias mundiais baseiam-se todos nesta ideia. É evidente que a propósito da existência deste dia, nós falamos do teatro, falamos da importância que tem o teatro nas sociedades, na importância que o teatro teve ao longo da História da humanidade. Mas esse trabalho da conquista de públicos tem de ser um trabalho de todos os dias, todos os dias têm de ser dias mundiais do teatro, como todos os dias têm de ser dias mundiais da mulher, ou qualquer que seja o tema.
E os jovens em particular? Acha que há um crescente interesse por fazer teatro, por ver teatro, ou por outro lado, um desligamento?
Eu próprio me tenho questionado em relação a esse tipo de assunto. Por um lado, o jovem como espetador de teatro precisa de ver muitas coisas, sejam boas ou menos boas, mas acima de tudo que tenham a ver consigo e com o seu tempo e a sua realidade. E há algum défice de apresentação de espetáculos que tenham, quer do ponto de vista temático, quer do ponto de vista estético, alguma coisa a ver com esta geração. Quando cheguei ao FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) comecei a fazer uma programação mais contemporânea, apresentei um espectáculo/performance do Igor Gandra, com animação de objetos, participação do público, portanto, uma proposta contemporânea. Tive algumas reações mais negativas de pessoas mais velhas, mais ligadas a um teatro convencional que me diziam “lá estás tu com modernices, onde é que foste buscar isto? Isto é teatro?”. Mas, quando os mais novos o viram, à saída do espectáculo, disseram: “Fantástico! Se o teatro fosse assim, íamos sempre ao teatro”. Cada vez mais é necessário que os jovens se relacionem com o espectáculo e não ir ao teatro apenas em contexto escolar, com sentido de obrigação. Pode-se ir ao teatro por uma questão de estudo, mas normalmente não se vai ao teatro para estudar, vai-se por outros motivos.
O outro aspeto tem a ver com o jovem fazer teatro. Eu julgo que os jovens descobrem o teatro, muitas vezes, na sua fase de estudantes e começam a trabalhar nos grupos universitários. O teatro universitário teve uma grande importância quer na cidade no Porto quer a nível nacional. Aliás, não se pode falar da história do teatro no Porto sem falar no teatro universitário. Foi fundamental. Numa altura em que não existiam as companhias independentes que existem hoje, era o local onde os encenadores podiam experimentar novas formas trabalhar, ensaiar propostas estéticas mais contemporâneas e descobrir autores contemporâneos. É uma pena o Teatro Universitário não estar devidamente incentivado e apoiado. Bem sei que os tempos são outros, existem hoje companhias que fazem algum desse trabalho, mas eu julgo que as universidades e os diversos estabelecimentos de ensino deveriam dar mais atenção à existência desses grupos.
Acha que em Portugal há uma formação de novos atores de qualidade?
Sim, a formação é realmente boa. Só na cidade do Porto temos quatro escolas, duas profissionais e duas superiores. Mas todas têm saídas profissionais excelentes até porque não forma só atores. O teatro não se esgota no ato de representar, há quem escreva teatro, há quem escreva sobre teatro, há quem faça iluminação, crítica, produção, som, direção, encenação. O teatro tem muitas frentes de trabalho profissional e as escolas do Porto formam excelentes profissionais que têm dado cartas por esse país fora.
Como alguém que já está no mundo do teatro há tanto tempo, como vê a evolução do teatro em Portugal dos últimos trinta anos para cá?
É evidente que o teatro passou por diversas fases e muitas crises. Mas faz parte da vida, é como nós, vivemos momentos bons e momentos maus. Antes do 25 de Abril, o que se via no Porto era principalmente teatro de revista e comédia, pouco mais. Para além do TEP, não havia muito mais e o que havia vinha de Lisboa. Na altura do 25 de Abril há uma explosão enorme de grupos de teatro, que saem precisamente dos grupos universitários, amadores, associações. Naquela altura, há um conjunto de grupos a fazer um teatro relacionado com a época, um teatro muito militante, panfletário, empenhado politicamente. Só mais tarde, a partir de alguns desses grupos, começam a aparecer os chamados grupos semiprofissionais e, só depois, as companhias independentes. Numa fase mais recente, Paulo Eduardo Carvalho, um homem com grande importância na cidade do Porto, trouxe para as companhias independentes da cidade, os novos autores europeus, nomeadamente os irlandeses, de quem tinha um grande conhecimento. Isto proporcionou a descoberta de dramaturgias que eram praticamente desconhecidas.
Quais as maiores dificuldades de um ator no panorama atual para que possa viver do teatro?
Eu diria que aqueles que querem ser atores e que querem ser profissionais das artes cénicas têm dificuldades idênticas aos de outras áreas profissionais, talvez com a agravante de esta área estar realmente numa crise maior do que algumas das outras, mas a situação é idêntica. Aqui há dias um colega de profissão dizia-me que nas provas para entrada para uma das escolas superiores de teatro do Porto, um dos candidatos na entrevista inicial, quando questionado acerca do porquê de querer fazer teatro, respondeu “desemprego por desemprego, faço o que gosto”. E isto é muito significativo em relação ao que pensam os jovens. É evidente que nesta altura é complicado, muitos deles partem para fazer trabalhos independentes, até sem apoio. Numa primeira fase isso é possível, depois têm que se virar para várias atividades, umas mais próximas da sua formação profissional, dobragens, produção, aulas, etc., outros mudam de profissão, outros ainda emigram. O Brasil e Moçambique, por exemplo, estão cheios de jovens atores e produtores de artes cénicas saídos daqui.
O que é que o teatro nos traz, que o cinema e a televisão não conseguem?
O teatro, como todas as formas artísticas, traz-nos a vida, traz-nos o que nós somos, o que nós sentimos, os nossos anseios, os nossos desejos, o que nos correu bem e correu mal e traz-nos a sociedade em que estamos, é um reflexo dessa mesma sociedade e por isso é que estas formas artísticas são por vezes olhadas com alguma desconfiança pelos diversos poderes. Em relação ao que o teatro traz de diferente em relação às outras artes, para o actor, traz algo de mágico: a proximidade com o público, que é uma coisa única. Todas as formas de arte têm a sua ligação com o público, até porque qualquer obra de arte só se completa no pensamento do espetador. Mas no teatro sentimos a respiração uns dos outros. O próprio ator precisa dessa respiração do palco, da cena próxima do público, da adrenalina, daquele medo, quase como artista de circo, que se cair não há volta a dar.