Cultura
TIAGO BETTENCOURT DEU CORPO E ALMA NO COLISEU DO PORTO
Pelas 21h40 o coliseu escurecia. Os mais atrasados tomavam ainda os seus lugares. Focos de luz abriam-se no palco. A descoberto, apenas um homem e um piano. O som das teclas delicadamente premidas começava a flutuar.
“Eu queria mais altas as estrelas”, começou Tiago Bettencourt numa alusão a um poema de Florbela Espanca, já interpretado pela fadista Carminho.
Fazia-se silêncio. O público estava embriagado na mística da música, na beleza das palavras, na intensidade reflexiva do momento. O começo do concerto constituía já uma promessa para as emoções que ainda haviam de aflorar.
Sem proferir qualquer palavra, o artista seguiu para “Espaço Impossível”, um tema mais agitado onde se encontrou com a banda. Após terminar a música, levantou-se para dar as boas noites ao coliseu que efusivamente irrompeu em palmas e assobios.
“Largar o que há em vão” foi o tema a seguir ao qual se dirigiu mais extensivamente ao público. “Porto, estou tão contente por terem vindo. Obrigado!”, foram as palavras de agradecimento perante o carinho e apoio demonstrado pela multidão que lhe enchia a vista. Confessou que queria fazer daquela noite uma noite especial e, por isso, ia seguir algumas sugestões de músicas deixadas no facebook que já não tocava há algum tempo.
Assim, revezando-se entre o piano e a guitarra, nesta noite, o cantor iria percorrer velhas glórias do seu período com os Toranja até álbuns mais recentes com os Mantha como O Jardim (2007), Em Fuga (2010), Tiago Na Toca & Os Poetas (2011) e Do Princípio (2014).
Depois de “Sol de Março”, o músico brincou com a plateia, demonstrando a sua boa-disposição e um agradável humor. “Quando resolverem bater palmas, é para aguentar até ao fim. Na próxima música, só podem começar depois do terceiro refrão!”.
No entanto, quando a popular “Canção Simples” teve os seus primeiros acordes, o acordo viu-se rompido e as cordas da guitarra pararam por momentos. “Então, estive a falar para quê?”. Imediatamente, levantaram-se gargalhadas dos vários cantos da sala e a música prosseguiu com um coro bem afinado que se manteve no êxito “Pó de Arroz”, de Carlos Paião.
Seguiu-se “Fúria e Paz” e a tão desejada “Maria”, temas que precederam o primeiro convidado da noite, Fred Ferreira. O atual baterista da Banda do Mar juntou-se a Tiago Bettencourt em “Ameaça”, resultando daí uma vigorante e enérgica atuação.
Após este momento, retomou-se a calma e serenidade em músicas como “O Lugar” e “O Campo”, acompanhadas ao piano e seguidas no silêncio pelos olhares atentos da audiência.
A agitação voltou a instalar-se nos famosos temas “o Jogo” e “Laços”, que agregaram o público numa só voz do início ao fim. E depois de uma breve introdução instrumental, surge a tão esperada “Canção do Engate”, versão da conhecida música de António Variações, com a qual Tiago Bettencourt conseguiu claramente seduzir os presentes. Mesmo antes da música acabar, o público irrompeu num forte aplauso prolongado.
“Só mais uma volta” foi dada até se registar em “Carta” um dos momentos mais altos da noite. Este tema tão emblemático foi introduzido por um breve discurso de Tiago: “A primeira vez que vim ao Porto ainda foi com os Toranja, no Sá da Bandeira. Foi um concerto muito engraçado e emotivo que contou com dois convidados especiais, o Manuel Cruz e o meu próximo convidado que vou chamar a seguir.”
Foi então que Pedro Abrunhosa entrou em cena para um dueto que se havia de transformar num grande coro, pela simultaneidade de vozes que trauteavam a música sem hesitar.
“Bem-vindo a casa, Tiago. Bem-vindo ao Porto”, proferiu calorosamente o músico portuense na transição para o êxito “É preciso ter calma, não dar o corpo pela alma”. No entanto, eles deram corpo e alma numa entrega absoluta ao tema que experimentou a magia de Pedro Abrunhosa no piano e a audácia de Tiago Bettencourt na guitarra. A fusão instrumental e vocal resultou num momento inusitado e arrebatador que culminou com Pedro a declamar com bastante sentimento e devoção os versos finais da música.
Sem dar descanso às cordas, Tiago, acompanhado por Pedro na voz, seguiu para o trecho final da “Carta”, fazendo soltar risos por parte do público pelo engenho que os músicos demonstraram na construção de todo o dueto.
Uma forte ovação envolvida em entusiasmo e energia acompanhou a saída de Pedro Abrunhosa e deu as boas-vindas a “Morena”, um êxito do último álbum que fez levantar todos das cadeiras.
A emoção continuou com a entrada de Márcia, a terceira convidada, que chegou ao palco pela mão do ex-vocalista dos Toranja. “Se me aproximar” e “A insatisfação” foram os temas que cantaram juntos, intercalados com momentos descontraídos de conversa e de interação com a plateia.
O piano é novamente o instrumento escolhido para mais um momento introspetivo. “Aquilo que eu não fiz” é o single do mais recente álbum do artista que fala daqueles que têm que abandonar o país em virtude de uma culpa que não é sua. Fala de uma luta partilhada por cada vez mais pessoas que não se escolheram “para a fila do pão”.
Uma vez que não tinha “propriamente músicas alinhadas”, deixou a escolha da próxima canção à mercê da vontade do público. “Eu esperei” foi o pedido mais frequente entre a plateia e fala “daquilo que esperamos das pessoas que estão à frente do nosso pais. Se bem que agora a coisa está movimentada. São muitos cães ao mesmo osso”. Esta breve introdução de Tiago teve direito a muitas palmas e risos antes de soar a harmónica.
E depois do vasto leque de temas interpretados, da atuação de grandes nomes da música nacional, depois de provar a versatilidade instrumental, a intensidade vocal e simplicidade de caráter, Tiago já perdia a noção do tempo. “Mas em quanto tempo vai o concerto? Se estiver a ficar chato, avisem. Não me deixam dar concertos muito longos, porque dizem que as pessoas se fartam.”
Após esta curta brincadeira com o público, o músico tirou da “Toca” o “Só nós dois”, um single que fala em cumplicidade e amor, altura ideal, portanto, para os agradecimentos. “Muito obrigado por terem vindo todos. Já não vinha ao Porto há tanto tempo e uma pessoa esquece-se do quão bom é voltar ao Porto. É tão bom voltar a casa.”
Com “caminho de voltar” anunciou que o concerto estava quase a terminar. Para última música, reservou o êxito “Chocámos Tu e Eu”, no qual todos se levantaram e bateram palmas, porque “é bom sentir, só mais uma vez”.
Duas horas e meia de entrega chegaram ao fim. Esta noite foi uma constante experimentação de emoções que deixariam que contar. Uma exploração do passado e do presente. Uma coletânea de êxitos e artistas de agora e de outros tempos reunidos numa viagem que não vai ceder tão facilmente lugar ao esquecimento.