Cultura
“O UMBIGUISMO DAS PESSOAS PASSOU A FAZER-ME MUITAS CÓCEGAS”
Catarina Furtado nasceu no verão de 1972 e terá sido, certamente, no seu código genético que veio inscrita a veia humanitária. Cresceu a ajudar a mãe com os alunos. Cresceu a preocupar-se. Lançou recentemente um livro onde fala das suas missões enquanto cidadã e voluntária. O JUP falou com Catarina.
Jornal Universitário do Porto: Na infância ajudava a sua mãe com os meninos da Crinabel, a escola onde lecionava. Acha que, mesmo inconscientemente, estava a começar este percurso?
Catarina Furtado: Acho mesmo que sim. E esse foi o desafio a que me propus quando aceitei escrever o livro O que vejo e não esqueço: perceber de onde vem esta minha inquietação em relação aos outros, aos que vivem em piores condições, aos que sofrem com a discriminação, a falta de oportunidades e a violência. Os preconceitos. Escrevo no livro que uma parte dessa urgência e desse foco nos outros terá nascido comigo, mas foi potenciado com a educação e com o que fui vendo, nomeadamente através da profissão da minha mãe, enquanto professora do ensino especial, e a do meu pai, jornalista, que me trazia relatos de outras realidades tão distantes e diferentes da minha.
J.U.P.: A sua infância e a sua educação foram determinantes para a forma como olha os outros…
C.F.: Absolutamente. Mesmo quando não sabia o que queria dizer preconceito, racismo, discriminação. Mesmo quando estava longe de ter consciência que no mundo inteiro, as mulheres e as crianças são quem mais sofrem. Os casamentos forçados e precoces, a mutilação genital feminina, a violência em diversas formas…
J.U.P.: A sua carreira televisiva ajuda-a no objetivo de divulgar o que vê. A RTP apoiou de forma determinante os seus documentários?
C.F.: A RTP, com as suas diversas direções, foi sempre apoiando. No último ano confesso que fiquei desapontada por não ter feito mais uma série do programa Príncipes do Nada, porque, de facto, acho que sendo um formato original, de serviço público, que informa e deixa espaço aos espetadores para refletirem e agirem, poderia continuar na grelha de uma estação pública. Acredito que possa estar para breve o seu regresso.
J.U.P.: Seria capaz de escolher entre televisão e o papel de Embaixadora?
C.F.: A verdade é que é o meu trabalho enquanto profissional de televisão impulsiona e promove a minha missão voluntária, enquanto embaixadora. Os Embaixadores de Boa Vontade são escolhidos por serem figuras conhecidas no seu país e por demostrarem preocupações genuínas e públicas sobre o mundo que nos rodeia e as suas desigualdades sociais. Dessa forma poderem servir de role models ou de mensageiros.
J.U.P.: Diz no livro que, quando recebeu a carta em casa com o convite para se tornar Embaixadora foi de imediato ver quais seriam as suas atribuições, caso aceitasse o cargo. Foi nesse momento que se apercebeu da dimensão daquela que viria a ser a sua função?
C.F.: Foi o momento do ataque de medo, de poder furar expectativas, mas logo a seguir fui invadida por uma vontade gigante de mergulhar em todas as pastas do UNFPA. Senti e sinto que é um imenso privilégio poder falar em voz alta em nome de todas as mulheres no mundo desenvolvido e em desenvolvimento, que não têm acesso a salários iguais, a espaços de serviços de saúde, saúde sexual e reprodutiva, educação, a quem a juventude e uma vida digna são roubadas por casamentos forçados, mutilações genitais, violência, violações. Jovens e mulheres que não têm acesso a um microfone.
J.U.P.: No livro fala dos portugueses, diz que temos “espírito de sobrevivência e sacrifício (…) mas também somos pouco proativos”. Somos um povo “treinador de bancada”?
C.F.: Somos um povo muitíssimo generoso, capaz de se dar com facilidade. Mas com uma generosidade mais emocional do que racional. Acho no entanto que, do ponto de vista dos direitos humanos, não temos muito bem consciência das nossas obrigações e não nos lembramos as vezes que seriam necessárias da nossa própria História. Considero que deveríamos ser mais organizados em termos de sociedade civil, mobilizarmo-nos mais em torno do mundo todo, que é nosso. Os direitos Humanos não têm fronteiras, são universais e indivisíveis. Confesso que não gosto nada da expressão Então e os nossos?.
J.U.P.: Ainda nesta parte do seu livro fala de como já lhe disseram que em Portugal também há quem precise de ajuda. Mas, na verdade, cá também tem projetos, como a CCC – Corações com Coroa.
C.F.: A CCC foi um projeto de vida que, juntamente com duas grandes amigas, a Ana Torres e a Ana Magalhães (e mais uns braços amigos fundamentais), fiz nascer há 3 anos, porque me instigaram muito e porque comecei também, naturalmente, a sentir necessidade de criar alguns projetos de apoio em Portugal. É uma ONGD (Organizações não Governamental para o Desenvolvimento) e existe para combater a desigualdade de género. Não tem um carácter caritativo, na medida em que não distribui bens, mas posiciona-se para apoiar mulheres e raparigas em diferentes áreas e ajuda a promover uma cultura de solidariedade, igualdade de oportunidades e inclusão de pessoas em situações de vulnerabilidade, risco ou pobreza.
J.U.P.: Ser Embaixadora das Nações Unidas faz com que viaje para países onde a realidade social é muito diferente da nossa. Como é chegar a um país onde a mulher é desvalorizada, onde ter um filho pode significar morrer e onde a violência contra a mulher é socialmente aceite?
C.F.: Já estou informada pelos dossiês e pelos técnicos que estão no terreno e que acompanham as visitas, mas muitas vezes é como se não fosse real. É chocante, é revoltante e acrescenta importância e urgência ao nosso trabalho. A verdade é que ao longo dos tempos, tudo o resto fica mesmo muito relativizado. Os problemas, o meu meio televisivo, que tem muitos conteúdos interessantes mas também muita futilidade. O umbiguismo das pessoas também passou a fazer-me mais impressão, muitas cócegas.
J.U.P.: Na promoção do livro falou num compromisso com as causas que defende, num compromisso com a cidadania. Acha que existe um compromisso enquanto cidadãos do mundo?
C.F.: Não só acho, como tenho a certeza, mas aqui já entro num capítulo mais sensível: “Quem sou eu para dizer que Todos e Todas temos direitos mas também temos Deveres e por isso deveriam deixar a sua pegada, o seu compromisso selado enquanto cidadãos do mundo?”.
Acho que a informação, o não se deixar viver na ignorância, pode ser uma das melhores ferramentas para que as pessoas se comprometam com o Desenvolvimento e a promoção dos Direitos Humanos.
J.U.P.: Como é que se aborda e transmite ao público um assunto tão sensível como a dor e a perda?
C.F.: Essa foi a maior de todas as dificuldades ao escrever o livro. No programa Príncipes do Nada tenho já definida uma linha que não ultrapassa, na minha opinião e do realizador Ricardo Freitas, a fronteira do respeito e por isso mostramos o que achamos que não viola a dignidade de quem sofre. No livro O que vejo e não esqueço, como não tem imagens, foi mais difícil porque estava a escrever na primeira pessoa.
A primeira decisão passou por não adjetivar muito, por não fazer “render” o sofrimento, de forma paternalista e sensacionalista (tenho alergia a esse tratamento!) e depois foi seguir a minha intuição e deixar transparecer a enorme admiração que tenho por quem faz o bem e por quem sofre dramaticamente, fruto das desigualdades gritantes no mundo. Aprendo muito com as mulheres que, por exemplo, são umas heroínas, sozinhas, a tomar conta de muitos filhos, a verem-nos morrer impotentes, a não terem comida para si e para eles, a nunca terem visto um médico na vida, nem um banco de escola. Anuladas. O que seriam elas se houvesse quem se importasse? O que seríamos nós se nunca tivéssemos ido à escola, ao médico? São potenciais que se perdem e que, quem sabe, poderiam ser cabeças bem pensantes para endireitar este mundo. É que cada pessoa conta! Ou deveria contar…
J.U.P.: Qual é a próxima meta enquanto Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas?
C.F.: A próxima é ir à Guiné Bissau e fazer o 4º Documentário “Dar vida sem Morrer”, ainda este ano, e é trabalhar afincadamente na promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis.
Por dia, 39 mil meninas em idade de brincar e ir à escola ficam noivas e casam.
Aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio sucedem-se agora os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, ditados pelas Nações Unidas e os seus Estados Membros, neste que é também o Ano Europeu para o Desenvolvimento. Ao todo são 17 Objetivos, sendo que fazem parte das causas defendidas por Catarina Furtado, com o UNFPA (Fundo das Nações Unidas para a População): o 3º- saúde: investir na saúde sexual e reprodutiva, já que ainda hoje (!) 800 mulheres morrem por dia por causas evitáveis relacionadas com a gravidez e o parto. Está provado que o planeamento familiar pode reduzir a mortalidade materna entre 25 a 40%; o 4º- educação e o 5º- igualdade de género. Segundo as estatísticas do Fórum Económico Mundial só em 2095 irá existir igualdade de género no mercado de trabalho, por exemplo.
Nos próximos 15 anos, 150 países irão comprometer-se a atingir as metas propostas. Nós todos e todas temos um papel fundamental enquanto sociedade e sociedade civil no instigar da concretização.