Cultura
MUNDO SEGUNDO: “A QUALIDADE DE PRODUÇÃO É ALGO QUE SE COMPRA, MAS O CARISMA E ALMA NÃO”
A muitos outros projetos, em território nacional e internacional, acrescenta ainda uma carreira a solo. Em julho de 2013, anunciou com o rapper Sam the Kid que um álbum conjunto estaria para breve. Duas músicas já foram divulgadas e elevaram ainda mais as expectativas do público, que espera pelo resultado final. Nós quisemos saber mais e fomos falar com o próprio. Mundo Segundo recebeu-nos no seu estúdio, em Vila Nova de Gaia, a cidade que o viu crescer, para nos esclarecer e partilhar a sua visão acerca do panorama geral do hip-hop português.
Quando se refere ao seu estúdio utiliza várias vezes a expressão “2º piso”. Até tem uma música com este nome. É este o 2º piso?
Não, não é este, mas aqui é o meu 2º piso. Esta ideia é móvel, digamos assim, onde eu estou é o 2º piso. Existe um andar que era o original, que na verdade também não era literalmente um 2º piso. É uma analogia que fazemos por estar num estado mental mais elevado e estarmos num patamar superior e depois a ideia foi-se arrastando. Ou seja, é onde nós estivermos. Até temos uma frase: “o 2º piso é mental, não pode ser destruído”.
Há uma pergunta que deve estar farto de responder, que é: porquê “Mundo Segundo”? Fizemos o trabalho de casa e sabemos que é o segundo Edmundo da família. Queremos saber quem foi o primeiro.
O primeiro Edmundo foi o meu padrinho de batismo, que me baptizou Edmundo também. Mas isto tem vários significados, porque como o pessoal dizia “vou ao Mundo, ao 2º”, de 2º piso, eu acabei por adaptar e ficou Mundo Segundo. Originalmente só assinava Mundo, depois passei a assinar Mundo Segundo.
Falando agora do álbum com o Sam the Kid, que é um dos seus projetos mais recentes. Como é que vocês se conheceram?
Eu conheci o Sam the Kid algures em 1996/1997, creio, num concerto de Mind da Gap, no ISCTE [Instituto Universitário de Lisboa], em Lisboa. Eu na altura acompanhava o grupo ao vivo, participava em algumas músicas, e tive oportunidade de o conhecer lá, a ele e ao falecido GQ, o seu companheiro de batalha. E a partir desse dia, ficámos amigos. Por curiosidade, vamos tocar no sábado [dia 24 de outubro] no sítio onde nos conhecemos. Vamos lá fazer um concerto os dois. A história tem destas coisas, volta a repetir-se… Um déjà vu num plano diferente.
Ao longo das suas carreiras, já tinham colaborado noutras ocasiões?
Sim, colaboramos uma primeira vez numa mixtape do Cruz [DJ Cruzfader], por volta do ano 2000, que se chamava “Cosa Nostra”. Eu, o Sam the Kid e o NBC fizemos uma música nessa altura, para a mixtape. Depois tivemos muitos anos a fazer coisas, mas nunca em conjunto, digamos assim. E agora, com o passar do tempo, surgiu a ideia. Um dia, há cerca de 2 ou 3 anos atrás, o Sam ligou-me com a proposta de fazermos uma batalha de instrumentais, já que somos os dois produtores. Eu achei piada à ideia e começámos a fazer ao vivo uma espécie de batalha, saudável, claro. Como já tínhamos tido a ideia de fazer um disco, com esses instrumentais a coisa foi-se outra vez avivando. Entretanto ele fez a carreira dele, eu também fiz a minha, a solo e com Dealema, e agora voltou outra vez aquela energia, porque na verdade este era um álbum planeado há muitos anos, antes sequer de metade do hip-hop português nos conhecer.
Como já se conhecem há tanto tempo fica sempre aquela questão: porquê um álbum só agora?
Nós tentamos na altura, mas não surgiu. Se calhar não estávamos maduros o suficiente, éramos dois meninos… Ainda somos, mas um bocadinho mais velhos. Não tínhamos essa maturidade de nos sentarmos, organizarmos as nossas ideias e fazer um álbum com 300km de distância. Hoje estamos mais apurados nesse sentido.
Já conhecemos as músicas “Gaia-Chelas” e mais recentemente o single oficial “Tu Não Sabes”. Ambas têm como tema a união Norte-Sul do país. As próximas músicas vão seguir este registo?
Por acaso estas duas primeiras músicas, especialmente a “Gaia-Chelas”, são músicas ao desafio. A segunda [“Tu Não Sabes”] é mais como um malabarismo lírico que fomos buscar às nossas métricas silábicas, bastante específicas de cada um, e aprofundámos um pouco isso. Nós temos muito storytelling no álbum, muitas histórias que decidimos contar, umas comuns, outras nem tanto. Uma das próximas músicas que vamos fazer em vídeo é totalmente diferente destas, potencialmente bem mais suave. Neste caso é uma só história contada por duas pessoas que seguem os mesmos traços, mas caminhos diferentes, basicamente. E vai ser um tema curioso, porque acho que é a primeira vez que se faz isso em português: nós usamos o mesmo texto, mas levamo-lo por caminhos diferentes, com as mesmas frases.
Tocando nesta dicotomia Norte-Sul, aguçada também pelo futebol, acha que esta união é importante para o hip-hop português e, no geral, para aproximar duas cidades tão importantes como Lisboa e Porto?
Sim, se bem que entre nós, nomeadamente entre a cidade de Gaia e a zona de Chelas, nunca houve problemas, sempre nos demos bem. Sempre fui bem recebido lá, o Sam sempre foi bem recebido cá, mas acho que serve um pouco para quebrar esse tabu Norte-Sul, porque isto não é futebol, é muito mais do que isso. É uma altura em que podemos trazer o melhor de cada cidade, o melhor do calão de cada sítio e levar as pessoas a ouvir e pensar “isto na minha cidade não se diz assim” e isso é para mim bastante interessante. Eu sinto-me bem não só com o Sam, mas também com outros amigos que tenho em Lisboa. Sinto-me em casa quando estou lá e faço questão de que eles também se sintam assim quando estão aqui. Às vezes, as pessoas que estão de fora vivem mais essa rivalidade do que nós propriamente, que estamos por dentro. Nós queremos é estar todos juntos, a celebrar e a aproveitar a vida. Tudo o resto fica para trás e é secundário.
Falando no calão característico de cada zona, há muitas diferenças visíveis entre o hip-hop do Porto e o de Lisboa?
Há, assim como também há entre o hip-hop do Algarve e o de Braga. Acho que essa é a beleza do hip-hop, cada cidade trazer o seu cunho pessoal e a cultura da própria região. Se fores de Guimarães, possivelmente tens a mentalidade “eu sou de onde nasceu Portugal” e vais usar isso como a tua identidade. Se fores de Braga, já és um guerreiro arsenalista. Cada rapper traz um pouco da sua raíz para a música e é isso que nos torna diferentes, o que é muito bom.
Como é que acha que o hip-hop se tem desenvolvido fora do Porto e Lisboa?
Nestes últimos dois meses tenho tido oportunidade de atuar em algumas escolas, a pedido de associações de estudantes e listas, e consegue-se perceber que as pequenas vilas e cidades já têm uma comunidade hip-hop, algumas a começar e outras já mais evoluídas. Mas se me perguntasses isto há 20 anos atrás, eu ia ao interior e não havia ninguém a ouvir ou a fazer rap, nem sequer uma pessoa. Hoje em dia, existe pelo menos um nicho de cerca de 200 pessoas a ouvir e nós sabemos que somos responsáveis por esse trabalho. É bom que as pessoas que fazem o mesmo que nós percebam que são eles os responsáveis por continuar esse trabalho. Mas sem dúvida que o hip-hop se alastrou por Portugal inteiro. Acho que não há nenhum sítio de Portugal que não saiba o que é o hip-hop, pelo menos em português. Esse foi outro passo importante que nós também decidimos dar: fazer rap na nossa língua. Em 1993, quando começámos, fazer rap em português não era válido para a população no geral nem para indústria musical, mas para nós já era. Hoje é muito mais válido fazer rap em português do que em inglês. Aí está uma grande luta onde finalmente conquistámos algum terreno.
Voltando ao álbum, não sabemos se já têm um nome em mente…
Isso é uma grande pergunta para a qual nós não temos resposta (risos). Nós temos muitos debates e quando chegar a Lisboa vamos ter outro. Sentamo-nos no hotel e começamos a divagar, a viajar para Marte, para Neptuno. Já tivemos algumas ideias, mas ainda não chegamos a um nome em concreto. O Sam disse “eu acho que se devia chamar Gaia e Chelas” mas eu acho que devíamos encontrar alguma coisa mais profunda. Mas se for “Gaia e Chelas” será “Gaia e Chelas”, não há nenhum segredo nisto. Porém, ainda não temos um nome concreto, ainda não tivemos aquele clique.
E a data do lançamento?
Isso é outra pergunta para a qual temos uma resposta mais ou menos para dar. Nós temos grande parte do disco já feito, pelo menos da minha parte e do Sam, mas entretanto decidimos chamar um produtor, que eu ainda não vou revelar quem é. É um produtor norte-americano que vive em Brooklyn e que tem um peso histórico no hip-hop dos EUA. Nós conseguimos que ele viesse cá a Portugal, passasse 15 dias connosco e produzisse uma grande parte do álbum, ou seja, que produzisse as músicas que nós achávamos que faltavam no disco e isso é uma mais-valia. Recebemos os instrumentais que nos deu de braços abertos e agora estamos a escrever as 5 músicas que nos faltam, o fim do disco. Faltava ali um toque qualquer e veio do outro lado do oceano.
Tanto o Mundo como o Sam são simultaneamente MCs e produtores, ou seja, estão habituados a fazer os beats e as letras. É fácil conciliar isto, as ideias de um e as ideias de outro, de forma a chegar a um consenso?
Sim. Nós temos os nossos ideais bem definidos, mas também temos abertura suficiente para perceber que se a tua ideia é melhor do que a minha, a tua ideia deve prevalecer e a minha deve dormir um sono (risos). Por exemplo, se eu estou a fazer um beat e o Sam acha que algum instrumento não está bem ou que podemos pôr outro, eu digo “então mostra-me a tua ideia” e se for melhor, eu retiro logo a minha e vice-versa. É isso que também é bom num álbum, sentir-se essa sinergia entre as pessoas. Não existe “não vou usar a minha cena, vou-me sentir diminuído”. Isso não existe entre nós. Existe uma coisa boa que é fazer música e divertirmo-nos a fazê-la. E vamos mudando: ele traz ideias e nós alteramo-las, até que no fim já não têm nada a ver. Por exemplo, havia esqueleto que ele [Sam the Kid] tinha feito para o single “Tu Não Sabes” e quando ele trouxe o instrumental, acabámos por acrescentar o baixo, trocar a bateria e a coisa ganhou outra forma. Conforme nos sentimos, vamos criando e alterando. É isso que acaba por nos divertir no processo de fazer música.
Acha que este álbum é uma mistura de dois sons ou o surgimento de um novo?
Este álbum tem um toque do velho com uma mistura do moderno, ou seja, nós tentámos preservar aquilo que achamos que é o nosso estilo hip-hop, mas ao mesmo tempo elevar a fasquia: pegar em algo antigo, torná-lo novo e fazer com que as rimas também sejam clássicas, mas frescas. Queremos que soe a 1998, mas que possa ser de 2020. Por isso é que também estamos a demorar algum tempo. Por vezes gravamos e passados alguns dias ouvimos e pensamos “não, isto pode ficar melhor” e voltamos a gravar até acharmos que está no ponto de ebulição. A “Tu Não Sabes” já estava feita há um ano e fomos aperfeiçoando-a, mudando aqui e acolá. Passado algum tempo tivemos de nos convencer: “já está pronto, vamos embalar e fazer um vídeo disto, se não nunca mais saímos daqui”.
Quais são as vossas maiores referências, quer para as letras quer para os instrumentais?
Tenho as minhas maiores referências no braço, tatuei todos os grupos que gosto. Gosto muito de Nas, Mobb Deep, Gang Starr, Common Sense, Xzibit e Mast Ace. São as minhas influências. O Sam tem quase a mesma escola que eu, nós somos praticamente da mesma idade. Temos gostos parecidos, mas ele começou a apreciar mais cedo o rap de Detroit, sonoridade essa que eu, mais tarde, vim a absorver. A nossa escola é uma mistura de Nova Iorque, Detroit e Los Angeles.
E como é que acha que os artistas da “nova escola” vão assegurar o futuro do hip-hop português?
Eu acho que há artistas muito interessantes. Há pessoas a escreverem bons textos e há muito bons produtores. Eu adoro trabalhar com pessoas da nova escola na produção. A escrita também evoluiu muito nestes últimos anos… Os músicos já se aperceberam que existem textos muito bons e que para se evidenciarem têm que ter uns textos ainda melhores. E eu gosto muito de alguns artistas da nova escola. Eventualmente, eu e o Samuel somos o exemplo de alguém mais velho que ouve constantemente coisas novas e diz “olha aquele bacano ali daquela cidade, está com um trabalho interessante”. Às vezes discutimos isso e fazemos questão de apoiar essas pessoas quando estamos com elas. É gratificante para nós saber que se um dia pousarmos as chuteiras vai haver alguém para ocupar o relvado.
Vocês são cabeças de cartaz. Mesmo quem não ouve hip-hop sabe o vosso nome. Qual é a chave para isto?
A chave é trabalhares muito e acreditares no que fazes. Ainda ontem falava sobre isto e perguntaram-me quando é que pensei que me podia dedicar ao hip-hop. E eu respondi que pensei nisso desde o início. Na primeira vez que fiz música, pensei: “é isto que quero fazer” e às vezes acreditares o suficiente em ti e no que queres ser é o suficiente. Se és real, convicto e se a tua personalidade e o teu caráter são de uma pessoa lutadora, tu consegues chegar onde tu quiseres. Mesmo que te digam que não, vais tentar sempre e um dia vais conseguir. Basicamente, acho que é esse o segredo: acreditar, trabalhar e ser bastante auto-crítico, isso é essencial. Costumo aconselhar os músicos mais novos a não publicarem na internet a primeira maquete que gravam, porque esse é o primeiro impacto que o público tem sobre nós e é o mais importante. Não é preciso publicar-se um primeiro trabalho muito profissional, basta ter-se um bom texto e uma boa seleção do instrumental que as pessoas vão achar que o artista tem algo de especial. A qualidade é algo que se compra, mas o carisma e a alma não, têm de aparecer logo desde o início.
Falando nas letras, o hip-hop é muito dependente do português. Lê muito?
Já li mais. Hoje ouço muito rap e muita música no geral. Ouço muitos textos de outros músicos que não fazem rap e também escrevem. Quando leio, leio alguma poesia, porque é mais rica metaforicamente e isso é o que eu uso na minha escrita. Quando leio, leio muito Fernando Pessoa e Florbela Espanca. Mas gosto muito de ver documentários, mais do que de ler. Não sei porquê, mas gosto de os absorver, conseguem cativar-me mais. Ler lembra-me de quando estou a escrever, que é um exercício mental muito exaustivo. Gosto mais que me falem.
Para além dos Dealema, tem projetos a solo e participa em vários projetos, como por exemplo o projeto BPM, no Brasil. Como consegue conciliar isto tudo?
Imagina que estás apaixonado por alguém. Tu trabalhas das 8h às 5h e a pessoa de quem gostas trabalha das 9h às 6h da manhã. Mas como tu gostas muito dela, vais arranjar um tempo qualquer para estar com essa pessoa. Pronto, é isso. Quando se quer, arranja-se tempo e consegue-se fazer. Tens é de estar apaixonado pelo que fazes. Eu não sou o tipo de pessoa que me sento e penso “podia fazer aquele projeto”. Eu penso e reajo, é algo automático em mim. E é essa a beleza da arte, ser espontânea. Eu penso “quero fazer isto agora” e vou fazer.
Quanto aos Dealema: há algum álbum para breve?
Para o ano fazemos 20 anos e estamos a gravar um DVD, que era algo que já queríamos fazer há alguns anos. Vai resumir um pouco a história da banda e vai ter testemunhos de pessoas que foram influentes neste percurso. Estamos também a tentar fazer um disco que acompanhe isso tudo, ou seja, um disco com DVD, para assinalar o aniversário.
E depois deste álbum com o Sam, tem mais algum planeado com outro “gigante” do hip-hop?
O próximo álbum, para além deste com o Sam e o dos Dealema, será o meu. É uma coisa que quero mesmo fazer, até porque mudei o meu show, agora com banda. Estas pessoas têm-me acompanhado e tenho tido a felicidade de perceber a sonoridade que cada um tem. O meu sonho, neste momento, é conseguir criar um disco que inclua a magia de todos, algo especial. Fundamentalmente, este projeto é isso: amizade. Acho que é isso que transparece a minha música.
Desejos para o futuro: há algum músico com quem nunca tenha trabalhado e gostaria?
Ui, isso era uma lista que nunca mais acabava. Gosto muito do Fernando Tordo, gosto também do Paulo de Carvalho, são pessoas com quem gostava mesmo de fazer uma música. Também gostava de trabalhar com o Gabriel o Pensador, algo que eventualmente irá acontecer. Foi uma das primeiras pessoas que ouvi a fazer rap em português e foi o primeiro grande concerto a que assisti, no Coliseu do Porto. Para além de cantores, há também uma panóplia enorme de músicos com quem gostava de trabalhar. Existem pessoas com imenso talento em Portugal. Mas acho que vou ter tempo para fazer isso tudo na minha vida. Vou tentar organizar-me e também contar com que essas pessoas queiram trabalhar comigo, eu espero que sim. Tenho fé, acima de tudo, e acho que vou conseguir.