Cultura
99 ANOS DO TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO: DAS CINZAS AO RENASCIMENTO
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Durante o dia, painéis espalhados pela cidade davam uma amostra do que seria a celebração à noite, no interior do Teatro Nacional São João (TNSJ). Podia ver-se, num vídeo, uma contagem regressiva culminando no número do centenário, a ser completado daqui a um ano.
Ao chegar ao teatro, palco de inúmeras histórias que criaram e criam enlaces de afeto com os cidadãos portuenses, já se percebia a euforia do público. O salão estava lotado, com pessoas saindo às portas e muitos sussurros seguidos de olhares curiosos. Via-se a afeição daqueles que “partilham esta casa como causa”, como dito em um dos discursos emocionados que regaram o teatro com aplausos e nostalgia no início da comemoração.
- Vídeo alusivo ao aniversário do TNSJ projetado na Praça da Batalha. Fotografia: Daniel Dias.
- Vídeo alusivo ao aniversário do TNSJ projetado na Praça dos Leões. Fotografia: Daniel Dias.
- Vídeo alusivo ao aniversário do TNSJ projetado na Praça da Batalha. Fotografia: Daniel Dias.
- Vídeo alusivo ao aniversário do TNSJ projetado na Praça da Batalha. Fotografia: Daniel Dias.
A celebração foi concisa em relembrar o tempo passado – muito bem passado na companhia de espectadores e histórias de vida, de proximidade, como quem vai ali tomar um café e esbarra em mais uma narrativa de intimidade com o teatro no âmago do Porto –, e incisiva em uma espécie de ensaio chamado de “ponto de ordem”, em que foram descritas dez ideias; desejos, projetos e até mesmo uma autoavaliação expondo problemas a serem solucionados, como a necessidade de uma intervenção de conservação e manutenção generalizada – os meios técnicos do teatro foram descritos como encontrando-se “desatualizados, no limiar da obsolescência”. Relembrando os anos passados mas olhando para o futuro, querem assim preparar um “teatro de elite para todos”, com projetos já bem definidos para 2020, o ano do centenário.
Os teatros ardem a partir do palco, e para acompanhar o ensaio das “Dez ideias para (mais) dez anos de Teatro Nacional São João”, foram exibidas dez fotografias ao público. Na primeira fotografia, foi relembrado o incêndio de 1908 que deixou o Real Theatro de São João, inaugurado em 1798 e projetado por Vincenzo Mazzoneschi, em ruínas. O Teatro de São João de Marques da Silva, que leva o nome de um dos mais notáveis arquitetos portuenses e responsável por seu projeto em 1920, ergue-se sobre os escombros desse São João primitivo, e é dele “sucessor e continuador”, como disse Luís Soares Carneiro, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto – que, em um trabalho ilustrado, analisou a história do teatro.
Outras fotografias envolviam antigos funcionários carinhosamente relembrados, como o Sr.Pêra; o anseio de uma “companhia quase residente” com um núcleo de atores contratados anualmente; encenadores “revelados” ao mundo à luz do São João; e o latente desejo de reinvestir na internacionalização, promovendo novas relações externas, principalmente com os países de língua portuguesa, assumindo o teatro como uma “reserva ecológica da língua”. Até mesmo os tempos do “São João Cine” e dos manuais de leitura, inventados em 2003, que tanto acrescentam aos espectadores ao oferecerem textos referenciais e provocarem uma reflexão acerca dos autores e obras, foram relembrados. Anunciou-se ainda o lançamento de uma nova coleção de livros nos âmbitos do ensaio, da biografia e das memórias, e aludiu-se aos “cadernos do centenário”, um conjunto de publicações temáticas em torno do número 100.
Junto com o ensaio em forma de caderninho, também foi entregue aos espectadores um lápis – dourado, como os ornamentos arquitetônicos do São João -, incentivando seu uso para novos projetos, aspirações e ideias que possam surgir no decurso deste ano rumo ao centenário. Ao final da exibição, Nuno Cardoso discursou pela primeira vez como Diretor Artístico do TNSJ.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
Como as chamas que levaram o São João ao chão, também se propagaram pelo teatro os aplausos ao final dos discursos, oriundos de espectadores diversos, que permeavam desde importantes e bem vestidos membros da sociedade portuense a jovens apaixonados pela arte e idosos, provavelmente frequentadores do teatro em suas mocidades, que se emocionavam a cada palavra dita e relembrada. Esta foi também uma celebração inclusiva, ao contar com uma tradutora em linguagem de sinais posicionada na lateral do palco durante todo o vídeo e discursos.
Como dito no palco, a um ano de se tornar centenário, o Teatro Nacional São João está, afinal, prestes a nascer.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
Para continuar a celebração, os espectadores foram chamados a uma visita guiada às entranhas do edifício, “Das tripas, coração”. Conduzida por atores, a plateia foi divida de acordo com frases escritas em um papel anexado aos seus bilhetes, as quais personagens devidamente caracterizadas aclamavam aos cantos do teatro e agrupavam as pessoas curiosas para o que viria a seguir. Sete locais aos quais um espectador normalmente não teria acesso foram descerrados, cada um com um trecho de uma obra teatral que remetia à memória cénica do TNSJ.
Começamos passando por escadarias e estreitos corredores, chegando ao fosso do teatro. O grupo é comprimido em um pequeno espaço e assiste a encenação de Ir e Vir, de Samuel Beckett. Vamos três mulheres em um banco, cochichando e envolvendo um passado não-explícito com segredos compartilhados e ocultos entre si, roupas iguais com cores distintas, chapéus que cobrem seus olhos e escondem suas faces. O silêncio também é ator nessa obra.
Em seguida, mais caminhos são descobertos, que agora levam ao camarim coletivo, com algumas cadeiras para o público. São vistas pelos reflexos dos espelhos as expressões de sofrimento de Inês de Castro e a postura de D. Afonso no trecho de Castro, a primeira tragédia clássica portuguesa, de António Ferreira. O desenho de luz é preciso e transparece a imagem dos atores com sentimento.
A terceira área descoberta foi no topo do teatro, após vários lances de escada que não pareciam acabar. Chegamos à varanda – não recomendada àqueles com medo de altura -, na qual passamos por uma estreita passarela e observamos inúmeros cabos, sustentações de cenários e iluminação, com o palco abaixo. Lá um excerto de Alma, de Gil Vicente, foi encenado, e a atriz, Maria Leite, desfilava lado a lado com os espectadores.
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Fotografia: Giulia Pedrosa.
Seguidamente, vamos ao terceiro balcão, sentamos nas cadeiras como típicos espectadores e vemos Shakespeare flutuar no teatro com um fragmento de A Tempestade. A paixão pura de Miranda e Fernando arrancam sorrisos e encantamento do público, com a euforia da donzela e galanteios do rapaz.
Nas escadas de serviços, somos colocados contra as paredes, literalmente, para assistir uma passagem de Gretchen, de Goethe, em que vimos Rafaela Sá vestida de bailarina interpretar a triste Margarida.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
- Fotografia: Giulia Pedrosa.
No bar, à meia-luz, sentamos todos para apreciar o diálogo entre Treplev e Nina, em um excerto de A Gaivota, do russo Anton Tchékov, que foi originalmente concebida como uma comédia pelo autor, mas é frequentemente interpretada como uma tragédia. Os espelhos também têm papéis interessantes no cenário, e revelam não só os atores como também os espectadores e suas faces intrigadas com o enredo.
Por fim, após o cortejo às descerradas entranhas do São João, o público retorna ao seu coração, o palco. Lá temos o grand finale com um extrato de O Resto Já Devem Conhecer do Cinema, de Martin Crimp, com um coro de atores. E encerra com uma adaptação de Noite de Reis, de Shakespeare, uma grande festa com todos os atores no palco. Palmas calorosas são seguidas do anúncio de que “o espetáculo acabou”.
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