JUP Retrospetiva
JUP Retrospetiva 2020: Música
Hoje, a três dias do seu fim, o JUP recorda os discos que nos transportaram para mundos distantes onde não existem pandemias nem confinamentos. Os discos, que por nos levarem para longe, nos fizeram valorizar tudo o que de bom temos por perto. Os discos que, num ano que tanto lutou pela sobrevivência, nos deixaram, verdadeiramente, viver.
Mínima Luz, Três Tristes Tigres
Quase vinte anos depois, os Três Tristes Tigres emergem do silêncio com um raio de luz forte e hipnotizante, que nos transporta para ambiências sonoras eletrizantes e experimentais. Ao longo da trip musical e poética que o álbum nos remete, escutámos um pop / rock transcendente e maduro, acompanhado pela poesia inquietantemente funesta e cáustica de Regina Guimarães, Ana Deus e Luca Argel. Também com adaptações de escritos de William Blake e Langston Hughes, as canções enriquecem à medida que nos entregamos à magia intimista e secreta, que distingue a banda portuense.
Um som que deambula entre o passado e o presente, Mínima Luz é uma tela viva de cores imensas, pantomimas oscilantes e suspiros, que nos transportam para um voo espiritual surrealino.
Hate for Sale, Pretenders
Os Pretenders continuam em grande forma, inconfundíveis e fiéis a si próprios, e este álbum confirma-o. Numa fusão musical surpreendente, que atravessa as décadas de 70, 80 e 90 (sem descurar influencias sonoras atuais) o álbum revela uma energia contagiante e uma vontade de continuar a partilhar histórias. Entre traços de sonoridades punk, rock, pop, new wave e até reggae, a narrativa do álbum passa por paisagens sonoras arrebatadas e rebeldes, como podemos ouvir em “Hate for Sale”, e outras mais melosas e introspetivas, como é o caso de “Crying in Public”.
Fácil de ouvir e radiofónico, este álbum da banda inglesa é uma miscelânea de diários sonoros de inconformados, apaixonados, sarcásticos e corações partidos. Entre um diálogo com a realidade social e o mundo interior de Chrissie Hynde e restantes membros da banda, a voz inconfundível da vocalista continua impecavelmente, confirmando que ainda muito tem para nos dar.
Folklore, Taylor Swift
2020 foi um ano de reinvenção para Taylor Swift, que aproveitou a quarentena para criar o oitavo álbum. Um lançamento surpresa com 16 complexas novas músicas e, decididamente, a maior afirmação artística da sua carreira. Sem basear o tema do álbum em volta de experiências pessoais, desta vez Swift criou uma narrativa imaginária típica das lendas folclóricas, em redor de um amor que se perdeu – mas batizou o título do álbum. Comprovando, mais uma vez, que a sua maior arma é o storytelling.
Folklore, produzido na íntegra em casa da cantora, conta com a colaboração, na escrita e produção, de Aaron Dessner (The National), Jack Antonoff e Justin Vernon (Bon Iver), que nunca estiveram juntos durante o processo de criação do álbum.
Divergindo, alternativamente, entre o tom calmo e refletivo para o sentimental e doloroso, Taylor Swift saiu da zona de conforto e criou o álbum que sempre pretendeu – real e cru, onde a chave é, indubitavelmente, a escrita. Destaca-se “cardigan”, “exile” (ft. Justin Vernon) e “my tears ricochet”. Dúvidas houvesse, após uma longa viagem entre o country e o pop, Taylor Swift pareceu encontrar o seu lugar no registo indie e, ainda, definir-se como das melhores compositoras da sua geração.
Punisher, Phoebe Bridgers
O segundo álbum da cantora norte-americana Phoebe Bridgers é, nada mais nada menos, que uma coletânea de conflitos emocionais e desilusões amorosas, erguidas por uma poesia descritiva sublime.
Punisher faz-nos sentir presos numa narrativa imensamente pessoal, perdidos em sentimentos que talvez conheçamos, mas parece que estamos a conhecer pela primeira vez. E, isto tudo, é escrito no melhor sentido possível.
À luz do título, Punisher (“alguém que fala sobre algo em excesso”) Bridgers deposita mil e um sentimentos que transbordam dos nossos auscultadores. As letras são inteligentes, a história mergulha na desconstrução do medo de viver, entrando numa verdadeira catarse – uma experiência apocalíptica, quase sugerida pela capa do disco, que revemos ao ouvir a obra da cantora de 26 anos.
O álbum é de escuta obrigatória, mas destaca-se “Chinese Satellite”, “I Know the End”, “Savior Complex” e “ICU”.
Good News, Megan Thee Stallion
A dois meses do fim do ano, recebemos, finalmente, boas notícias: a chegada do quinto álbum de estúdio da rapper estadunidense Megan Thee Stallion.
Com uma sensibilidade para a série de eventos traumáticos que aconteceram globalmente durante o ano de 2020, num nível geral, mas também pessoal, Thee Stallion decidiu fazer uma pausa da dor sofrida pelo mundo inteiro durante 49 minutos. O álbum traz 17 faixas que refletem sobre a perseverança necessária para encarar a vida, mas, mais importante como uma forma de celebração da mesma.
Esta é uma pausa bem merecida.
Circles, Mac Miller
Lançado postumamente, Circles é o sexto e último álbum de estúdio do Mac Miller. Quase como adivinhado o quão necessário seria este projeto neste ano, Jon Brion concluiu a produção das faixas inacabadas que o rapper terá deixado pouco antes da sua morte.
A honestidade admirável de Miller abraça o ouvinte que, à medida que o avança com o álbum, será, automaticamente, forçado a debater-se com o tópico da perda, aceitando-a, mas renunciando-a, desenhando círculos no paradoxo do que sente.
Circles define, definitivamente, a palavra “agridoce“ e, tal como a memória de Mac Miller, ficará suspenso no tempo e nos corações de uma geração, sendo este álbum, possivelmente, o magnum opus do artista.
Fetch the Bolt Cutters, Fiona Apple
Fetch the Bolt Cutters, a mais recente longa duração de Fiona Apple, saiu, arrisquemo-nos a dizer, precisamente quando era preciso que saísse. Oito anos depois do seu último, o quinto álbum da compositora americana viu a luz do dia em abril, a meio de um confinamento que prometia ser duradouro.
E é neste ambiente de clausura domiciliária que surge Fetch the Bolt Cutters, um disco que parece estar vivo, em movimento, mas que soa “a casa”. Os instrumentais parecem improvisados, há participações dos seus cães (com direto a créditos) e canções sobre bullying, sobre amor e sobre estar vivo.
Este é um álbum que nos mostra uma Fiona Apple com a cabeça nas nuvens e, ao mesmo tempo, com os pés bem assentes no chão. E é nesta figura de gigante que fica a certeza de que, mesmo que tenhamos de esperar mais oito anos por um álbum, se vier tão bom assim, vale a pena a espera.
Cuca Vida, Conjunto Cuca Monga
Cuca Vida é, provavelmente, o álbum que servirá no futuro para mostrar às gerações vindouras o que foi a pandemia e 2020. Um álbum composto à distância por músicos da editora Cuca Monga, o disco é, mais do que um conjunto de canções, uma obra de superação e de evolução.
O ponto alto do disco é, indubitavelmente, “Tou Na Moda” – uma dissertação sobre a “influencierice” e a vida moderna, com uma roupagem non-sense que é ao mesmo tempo rock, pop, rap e psicadelismo. No fundo, é o melhor cartão de visita de um álbum cheio deles.
E além da qualidade exímia dos instrumentais e das letras recheadas de humor, mas que descrevem na perfeição os tempos que se viveram em 2020, a amizade sentida pelos intervenientes está de tal forma presente que transborda para nós. Cuca Vida acaba por ser uma festa para a qual somos sempre convidados.
O ano acabaria por ser trágico para a família Cuca Monga, com a morte de Gastão Reis, dos Zarco, mas, no final de contas, Cuca Vida será sempre uma boa lembrança. Uma fotografia de um grupo de amigos a festejar a vida, além das paredes, dos vírus e do futuro.
Canções do Pós-Guerra, Samuel Úria
O mais recente disco de Samuel Úria viu o seu lançamento adiado com a pandemia. No entanto, se a qualidade do disco é notável, tivesse ele saído em qualquer altura, é inegável que o seu lançamento a meio de uma “guerra” é mais do que adequado.
Entre reflexões sobre si próprio e sobre o mundo, Úria mostra-nos, a cada canção, como o seu lugar no pódio de escritores de canções portugueses está mais do que garantido. “Cedo” e “Menina” são baladas incontornáveis, “Aos Pós” e “Fica Aquém” são hinos para o futuro, mas é com “O Muro” que vemos o maior momento do álbum.
Um disco que canta para dentro e para fora, Canções do Pós-Guerra é mais um tiro certeiro na discografia de Samuel Úria. E, no final, fica apenas a dúvida de se ele é sequer capaz de falhar.
Heaven to a Tortured Mind, Yves Tumor
Yves Tumor é tão únicx que custa a quem está a ouvi-lx pela primeira vez não pensar que se trata de toda uma banda.
Ao contrário do quase-tão-magnífico antecessor [Safe in the Hands of Love,(2018)] Heaven to a Tortured Mind é mais focado e trabalhado. A mistura de vários géneros e vertentes continua a existir, e a experimentação também (claro!) mas há aqui um eixo que une o projeto todo com precisão.
Esta natureza experimental (que advém da intrínseca vontade de quebrar barreiras) deixa-nos com uma boa sensação de desorientação conforme progredimos através de ritmos discordantes, uma produção erraticamente suave e letras minuciosas.
A arte de Yves Tumor, já surreal e extrema, aqui está pingada em ouro, envolvida em veludo, e é-nos serenada através das mais bonitas melodias e vocais quase metafísicos. Apesar de transcendentalmente etéreo do início ao fim, o melhor exemplo e resumo da genialidade do álbum é o single “Kerosene!” – uma das viagens musicais mais envolventes de 2020, inserida num dos projetos mais brilhantes do ano.
SAWAYAMA, Rina Sawayama
Apesar de saturado a um nível de reprodução e fórmula, o pop clássico/tradicional (aquele em que as rádios pegam ao colo) é um género muito desprovido de inovação e musicalidade. Isto até Rina Sawayama entrar em cheio com o seu primogénito autointitulado.
O excelente EP Rina (2017), já tinha deixado muita água na boca, mas SAWAYAMA conseguiu superar todas as expectativas. Numa mistura perfeita de nu mental, electropop, rnb comtemporário e glitch house, o álbum encapsula aquelas que são algumas das técnicas de flexão de género mais interessantes e satisfatórias que já ouvimos, todas debaixo da magnífica asa das monstruosas 13 faixas que compõem, talvez, o projeto mais vanguardista do ano.
Inovador, mas apelativo ao mainstream, não há quem resista à personalidade gigante e ao grito empoderado e confiante de Rina, que domina absolutamente como a rainha que é, pois não há ninguém no pop que a ultrapasse, neste momento.
Miss Colombia, Lido Pimienta
“Si es que mañana muero, no le tengo miedo pues soy mujer y llevo el dolor adentro”, canta destemidamente Lido em “Nada”, numa energia que caracteriza o álbum inteiro – uma carta de coração aberto de uma mulher a reclamar de volta o poder que sempre lhe pertenceu.
É através de uma magnífica fusão espiritual entre o art pop e a cumbia (música típica nacional da Colômbia), co-produzida pela própria Lido, que a cantora nos leva numa jornada pela sua pessoa. Sem qualquer medo da vulnerabilidade, convida-nos a conhecê-la, às suas origens, às suas lutas diárias enquanto mulher latina e queer e à cicatrização do seu coração partido.
Miss Colombia é a reconstrução de uma verdadeira força a ser reconhecida. Uma mulher que, face a tudo o que passa e passou, se expõe livremente, pois está na altura da sua história e de semelhantes serem exibidas e faladas sem inibições.
Calambre, Nathy Peluso
Um fenómeno no mundo da língua espanhola. Nathy Peluso era um tesourinho (ou tesourão) escondido do mundo americano – até ao vídeo da interpretação de SANA SANA no A COLORS SHOW chegar ao Twitter e sofrer às mãos da Internet. Mais business para a melhor Business Woman que, pelo meio dos memes, acabou por ganhar fãs por todo o mundo.
No entanto, para uma artista tão popular, falhou ao mundo musical reconhecer a perícia de Calambre. O espetro de Nathy é sensacional – tanto no registo da sua voz, como nos vários géneros e ambientes aos quais é capaz de adaptá-la. Trap na “SANA SANA” e “DELITO”, reggeaton na “AMOR SALVAJE”, r&b na “BUENOS AIRES”, salsa na “PURO VENENO” e um cruzamento brutal entre tango e rap no remate final, “AGARRATE”.
No meio da reinvenção de tantas tradições musicais e tantas linhas engraçadas, percebemos que o verdadeiro miolo do projeto é o prazer, a alegria do poder a ser exercido: o toque e os prazeres corporais, o gozo da combinação de géneros, e o esboço de imagens tão coloridas – e até a profunda desolação, que também faz parte.
Calambre brilha na sua leveza e carisma e veio fixar a posição de estrela de Nathy na música latina.