Desporto
O FEITICEIRO DE SEVILHA
As causas para a derrota do Benfica na Liga Europa (4-2 nos penáltis) têm sido da ordem do metafísico. Escusado será dizer que o culpado não foi o anterior treinador Bélla Guttmann, bicampeão europeu ao serviço do Benfica. Penso ser mais importante referir as cinco ausências de jogadores do clube português nesta final. Não jogou Sílvio, defesa direito que empresta muita consistência defensiva e também Fejsa, um número 6 mais posicional que ajuda os centrais e equilibra a equipa à frente da defesa. Ausente esteve também Enzo Pérez, o médio responsável pelas transições da equipa, pela pressão alta e “roubo” de bolas à entrada da área adversária e também possuidor de um remate de segunda linha temível. Os dois avançados indisponíveis foram Markovic e Sálvio, jogadores que “queimam” linhas adversárias muito facilmente com a sua velocidade. A capacidade técnica e velocidade de movimentação do sérvio, procurando zonas interiores, não estiveram presentes. De lamentar para as hostes encarnadas também a ausência da precisão de cruzamento, simplicidade de processos e capacidade de finalização do argentino. Estes condicionalismos fizeram certamente falta e impediram uma final feliz. Portanto, em vez de apontar a maldição do “timoneiro” húngaro como causa, os réus deveriam ser Markovic e Enzo que foram expulsos nas meias-finais, comprometendo assim o jogo decisivo. Sem os dois melhores extremos, com Sulejmani a lesionar-se no início da partida e Gaitán a ressentir-se fisicamente a partir dos 75 minutos de jogo, as hipóteses do Benfica de levantar o troféu diminuíram drasticamente. Devo dizer que o facto de os encarnados perderem esta competição no último jogo não deve envergonhar os seus adeptos e dirigentes. Com tantas “pedras” imprescindíveis ausentes à partida para a final, a equipa portuguesa deixava de ser favorita embora, na máxima força, fosse inegavelmente superior. O Sevilha, com todos os titulares disponíveis, abordava o jogo com um estado de espírito muito confiante na conquista do troféu.
Na zona onde o Benfica claudicou mais foi na articulação entre Rúben Amorim e André Gomes. Esta dupla não pressionava em zonas adiantadas nem baixava para junto do quarteto defensivo, perdendo no duelo físico para o duplo pivot “espanhol”, Mbia e Carriço, que ganhou a maioria das bolas divididas, entregando-as sem pressão a Rakitic, o organizador de jogo “sevilhano”. A dupla de centrais Fazio e Pareja fez uma exibição luxuosa, dominando todo o espaço aéreo e colocando-se sempre no caminho da bola, mesmo quando o Benfica dispunha de tempo e espaço para finalizar. O “guardião” Beto foi o melhor jogador em campo. Efectuou “paradas” espectaculares no tempo regulamentar e, como já havia demonstrado em desempates da marca de grande penalidade anteriores, defendeu duas e foi o “herói” do jogo.
Como esclareci no artigo da passada semana, a “maldição” de Guttmann não contempla a Liga Europa, apenas a Liga dos Campeões. Houve uma espécie de “batalha” de espíritos e da sua influência, onde foi dito que “Eusébio e Coluna «passariam a mão na cabeça» de Guttmann para o “amansar” com o intuito da taça vir para Lisboa. É revoltante ver a esmagadora maioria dos agentes desportivos e órgãos de comunicação social a comentar e a escrever sem qualquer tipo de rigor e a entrarem neste bate boca popularucho. Para além deste imbróglio efabulatório, houve também uma tentativa de exaltação ao clube da águia, num histerismo alicerçado a um revisionismo histórico mentiroso, onde se afirmou que o Benfica podia ser a segunda equipa europeia a ganhar 4 títulos numa época, a par do Celtic de Glasgow de 1966/1967. Importa lembrar que o Porto de Villas-Boas (2010-2011) e de Tomislav Ivic (1987/88) ganharam 4 troféus numa época. Exemplos recentes temos também o Bayern no ano passado e o Barça de Guardiola em 2009/2010.
Mas quem sou eu para eliminar este pathos “Guttmanniano”. Estando já tão solidificado na nossa sociedade e apoiando-me em Gioachino Rossini e na sua comédia musical “O Barbeiro de Sevilha”, proponho uma ode estilo camoniano ao guarda-redes Beto como o “Feiticeiro de Sevilha”. Afinal, tenho também de me enquadrar nos cânones estilísticos da escrita desportiva contemporânea nacional.
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Miguel Braga
17/05/2014 at 20:54
Mais uma vez, o meu caro amigo David surpreende com outro magnificamente bem redigido e elaborado artigo que faz, de uma forma minuciosa, ao jogo da final da Liga Europa. Os meus sinceros parabéns por mais um artigo que ultrapassa, a nível linguístico e de pormenor, alguns jornalistas que redigem, para, por exemplo, o Jornal de Notícias online. Continua assim e o sucesso será um dado adquirido por mérito próprio.
joao barbosa
18/05/2014 at 00:04
concordo com a analise que fizeste ao jogo! daqui a 10 anos quando olharmos para trás e pensarmos que o slb jogou uma final europeia com um meio campo com ruben amorim e andre gomes e , mesmo assim, foi ,em muito momentos, superior e so perdeu nos penalties ,vamos dizer que JJ fez um grande trabalho de preparaçao de jogo!!
no entanto, nao concordo com a tua opinião em relaçao à fantochada à volta da maldição de gutman! gosto sempre de ver o benfica associado à palhaçada e à falta de miolos!! podem ter a certeza que isso pesou- e de que maneira!!- no sub consciente dos jogadores! na vespera da final um adepto, não convencido da inflluencia de eusebio e coluna do outro lado, dizia”ainda não chega, tem que morrer o simões ,que é mais palavroso, para convencer o gutman” ora , então, longa vida a antonio simoes!
Fábio Costa
18/05/2014 at 12:20
Nem uma referencia ao cardozo..só escreves pelo latim..
David Guimarães
19/05/2014 at 00:09
Avé Fábio Costa!
Como falou da língua latina permita-me que site Terêncio (-185/-159), compositor da Roma Antiga: “Somos orgulhosos ou humildes consoante a maneira como os negócios nos correm.”. A sua soberba está ao nível do Il Specialle, mas os seus comentários relembram-me os anos “dourados” de Octávio Machado. A sua capacidade argumentativa é um autêntico Calciocaos. Merece, por isso, a atribuição de um Bidone d´Oro.
Raquel Moreira
19/05/2014 at 09:51
Fábio gostaria de o ouvir “latinar” sobre o Cardoso ou sobre qualquer outro tema que acrescentasse alguma coisa ao debate.
Gostei da sua referência ao latim, porque de facto o David escreve de forma erudita, o que é raro nos dias de hoje.
Anabela Simão
18/05/2014 at 21:34
Mais um artigo muito bem redigido!!! Do conteúdo não percebo nada… Beijos David e em fren te!
Pedro Marques Pinto
18/05/2014 at 23:40
Caríssimo David,
Os mitos, neste caso o de Guttmann, são como as superestruturas marxistas: permanecem ao longo do tempo, como agentes antropológicos definidores das lógicas sociais e humanas. Parece-me que o Sevilha tenha sido um justo vencedor. Foi um jogo equilibrado, sem grandes oportunidades de perigo para ambas as equipas. Mas o Sevilha demonstrou ter mais sangue frio na recta final, maior qualidade ao nível individual. É infeliz que uma final europeia se decida através da marcação de grandes penalidades. Mas é esta a legislação que o futebol legitima. Concordo contigo – o Beto foi um dos melhores, senão mesmo o melhor jogador em campo, pelo menos aquele que provou ser decisivo num momento tão importante como o que protagonizou. A analogia (quase paródica) que estabeleces entre o feiticeiro-jogador e o barbeiro rossiniano é, no mínimo, original e bem elaborada. O pathos guttmanniano vai entretendo a veia retórica de uns quantos comentadores benfiquistas. Os mitos, esses, continuam a ser eficazes explicações para a comédia humana que nos cerca.
Um grande abraço e felicidades
Rui Sousa Pinto
19/05/2014 at 16:55
Caro David,
Parabéns pelo bem elaborado texto e pela análise que fez sobre a derrota do SLB em Turim.
Realmente é profundamente lamentável que no séc. XXI se recorra a mitos fabricados para explicar o que é verdadeiramente alicerçado na incompetência! Mas mais lamentável ainda é o facto de haver jornalistas e comentadores que usam essa retórica naquilo que escrevem. Depois admiram-se de ainda haver adeptos (de futebol e de muitas outras coisas, desportivas e não só…) que se comportam de maneira primária! Bons “professores” não lhes faltam!
É importante que comentadores como você os vão substituindo. Quanto mais não seja para “arejar” o ambiente…
Abraço
Rui Sousa Pinto
David Guimarães
22/05/2014 at 02:08
Adorei as suas palavras Rui Sousa Pinto!
De facto, o problema é que os “professores” que falou são de muito fraca qualidade e pior do que isso, não manifestam idoneidade nem rigor. Em suma, influenciam erradamente as pessoas. As já mal informadas, continuam na ignorância. As esclarecidas, revoltam-se. Concordando consigo, considero este caldo de cultura perigoso e explosivo.
Um Abraço!
Carlos Martins
20/05/2014 at 01:49
Bom texto, David. Artigo bastante completo e detalhado. Reflexão interessante. Continua!
Sérgio Ferreira
22/05/2014 at 16:49
Viva David,
Mais do que a análise detalhada do jogo, gostei da referência ao clubismo claro da imprensa nacional.
Em relação ao jogo, concordo quase em absoluto com a tua opinião, mas permite-me que acrescente, que como em outros jogos esta época, Lima fez a diferença. Infelizmente para o clube com Sad em Portugal (visto ter sido tão português como o Sevilha), Lima, foi destaque pela negativa. No geral a equipa do Benfica claudicou, naquilo que costumava ser mais forte, o ataque, a nota artística!
As duas equipas falharam inúmeras oportunidades claras de golo e a “sorte” dos pontapés de grande penalidade, sorriu aos Sevilhanos. Mas esta sorte procura-se e trabalha-se, a equipa espanhola bateu todos os penaltis de forma eficaz, enquanto que Cardozo e Rodrigo, denunciaram a sua intenção.
Em relação ao clubismo da imprensa, diria que já estou habituado…há uma tentativa constante de se exaltar os feitos deste clube, já faz muito tempo.
Os mesmo jornalistas que criticaram a derrota do Porto e que estavam com as favas contadas para a festa encarnada, e com a programação televisiva da próxima semana, alinhavada para documentários sobre os feitos do Benfica, devem ter engolido a seco esta derrota. A falta de profissionalismo de alguns destes media, são no mínimo tristes.
Termino com uma frase da avó de um amigo meu, no fim da final que está em análise: “…ainda bem que perdeu, assim já posso ver televisão nos próximos 2 dias.” , até esta senhora que nem gosta de futebol, entende claramente o populismo e propaganda comum.
Forte abraço.
Rui Teixeira
23/05/2014 at 00:13
Muito bom texto Davis, sem surpresas! Apenas gostava de acrescentar que na minha opinião a mentalidade dos jogadores do benfica carece ainda de um pouco de cultura de “vencedor”. Exemplo disso é o facto de o S.L.B. enquanto instituição publicitar um falso triplete (sendo que um verdadeiro é composto por um campeonato, uma taça doméstica e uma competição europeia). Ou seja, apesar do prestigio de alcançar duas finais consecutivas, a instituição Benfica rejubila pelo facto de continuar a conseguir falhar nas grandes decisões. Porém, julgo que este Benfica se trata de um Benfica mais forte e competitivo que o Benfica há 5 atrás, sendo que um pouco mais de assertividade na abordagem a este tipo de jogos, uma vez que o Benfica com todas as ausências tinha capacidade física e técnica para controlar o jogo(ao invés disso, permitiu que este se “partisse”) e tratar esta final com mais tranquilidade.
Diogo
23/05/2014 at 00:33
David, acho que o Benfica perdeu esta final por vários motivos: arbitragem, falta de sorte e incompetência. Acho que é óbvio que a incompetência foi o principal fator. Independentemente das ausências por lesão e castigo, o Benfica era favorito e tinha a obrigação de ganhar este jogo. Uma equipa altamente competente teria tido capacidade para superar todas as adversidades (internas e externas). De uma coisa tenho a certeza absoluta e concordo a 100% contigo: o Benfica não perdeu esta final (alcançando uns incríveis 80% de derrotas em finais europeias!!!) por causa do Bella Guttman, como a comunicação social quis fazer crer.
Tiago Aboim
23/05/2014 at 20:38
Uma grande reflexão ! Parabéns pela redação, aqui está talento !
Força David !
António Pais
25/05/2014 at 02:05
Olá ilustre,
Na linguagem do misticismo oriental, a palavra Karma, que é hoje muitíssimo conhecida, diz que determinado conjunto de acções determinam resultados contrários equivalentes, sendo que o nosso Karma (espécie de pathos) aumenta na medida que as nossas acções se repetem. O Karma do Benfica, é notoriamente, perder finais de competições europeias.
A maldição de Guttman é apenas uma imagem que reforça esse Karma, transportando para o plano metafísico as razões da derrota do Benfica. Na perspectiva da sabedoria oriental, não serão as desculpas esotéricas, a principal causa para a penosa consolidação do Karma benfiquista? Provavelmente sim. Um demónio que o clube terá que exorcizar.
Espero ansiosamente pelos próximos artigos,
Cumprimentos!
Luís Cavadas
28/05/2014 at 15:34
Como sempre muito bem escrito! Um jogo de futebol é muitas vezes traduzido num único momento. Ás vezes é mesmo uma questão de sorte, de pontaria ou mesmo de levantar a cabeça no momento certo. Acho que o Benfica não teve sorte mas sem duvida que a ausência de jogadores foi essencial para a perda da final. Parabéns pelo texto