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O CRAQUE COMO O “BOM SELVAGEM”

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David Guimarães

David Guimarães

Para Jean Jacques Rousseou o “bom selvagem” estava numa etapa primitiva e infantil de desenvolvimento, aquilo a que chamava de “estado de natureza”. Este atraso necessitava forçosamente de ser ultrapassado para que a humanidade construísse formas de convivência mais adequadas ao conjunto dos indivíduos. Uma sociedade civilizada só brotaria na sua plenitude, com a superação da “lei natural”, ou seja, apenas através da debelação dos selváticos costumes indígenas se atingiria uma sociedade com elevação racional, organizada, no fundo, “iluminada”. Este filósofo francês não desprezava este ser selvático (daí a adjectivação abonatória), catalogado como um Homem feliz pela integração em plena harmonia com o seu meio envolvente. Rousseau, apesar da benevolência com que olhava para estes indígenas, considerava que a interação com a abundância da natureza e a possibilidade infinita de saciedade retiravam aos integrantes destas comunidades a curiosidade, factor chave para ir mais além no conhecimento e evoluir.

Dito isto, estou a lembrar-me dos craques do mundo do futebol, os médios ofensivos, os 10 puros, que parecem nunca se conseguir integrar na “superior sociedade futebolística contemporânea”. Estes tecnicistas com capacidades definidoras ímpares como último passe/remate, aptidões inatas de qualidade na condução de bola, facilidade de organização de jogo, possuidores de um controlo de bola seguro e de fintas desconcertantes, têm, hoje em dia, apenas lugar no “desterro” que são as alas (veja-se o caso de James Rodriguês no Porto, entre muitos outros exemplos). Faço este artigo a pensar principalmente num jogador, que sofreu na pele este estigma do “bom selvagem”, o portista Juan Quintero. Como nunca esteve em causa o talento do colombiano, o argumento mais vezes repetido para a sua não inclusão era o da sua rebeldia táctica, que descompensava a equipa. Outra das lacunas apontadas que explicavam o seu papel secundário na equipa azul e branca era uma suposta irregularidade exibicional, a cada partida de inspiração, seguiam-se três ou quatro sem qualidade. Por último, o rótulo de inexperiente tornava-o desaconselhável nas partidas competitivamente mais exigentes, subsistia uma crença geral na falta de arcaboiço para a resolução de problemas tão exigentes. Este craque sul-americano já desmistificou estas ideias feitas e pouco fundamentadas. O seu trabalho defensivo é bastante significativo e é perfeitamente absorvível pela equipa, que tem demonstrado consistência com o fantasista em campo. Nos últimos jogos em que participou, foi influente em todos, contribuindo com golos e passes decisivos, que fizeram a diferença no jogo e no resultado. É inegável também que responde frente a excelentes adversários e diante grandes palcos, tendo brilhado contra o Shakhtar, Atlhetic Bilbao e Sporting.

Quintero era mais um “bom selvagem futebolístico”, considerado puramente livre nos seus movimentos, impulsivo no contacto com o jogo, desligado dos movimentos colectivos, fora da “sociedade da equipa” devido à sua propensão arrogante para a independência, para o isolamento, em suma para a “auto-suficiência”.

Estes mágicos não precisam de superar o “estado natureza” para se tornarem membros da “sociedade do progresso” A sua predisposição para um “tecnicismo selvático” não deve ser vista como meramente genética nem categorizada como a manifestação de um estado embrionário do atleta, pré progresso, à espera da polidez do meio civilizado. As aptidões individuais inatas são também aprimoradas ao longo de anos, não são uma sabedoria estanque, também têm que ser vistas como algo que requer uma evolução e refinação contínua. Cabe ao futebol e a quem o comenta compreender os predestinados, os génios, sempre incomuns, sempre desalinhados mas responsáveis pelos saltos evolutivos e qualitativos das suas equipas. Esse colectivo social é que tem de se adaptar a eles e integrá-los, nunca o contrário. A “magia natural” não deve desaparecer para se consumar o “colectivo iluminado”. A luz do todo brilha com mais vigor quando se integra o génio na comunidade, quando existe uma “cooperação de estados.”

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8 Comments

8 Comments

  1. Raquel Moreira

    01/11/2014 at 16:10

    Bem vindo de volta!
    Vamos poder continuar a assistir à evolução das tuas “aptidões individuais inatas” para integrar o futebol, através dos teus comentários, com outras áreas da cultura, “iluminando” o teu campo de estudo, tornando-o assim muito mais interessante.
    Obrigada e parabéns!

  2. David Guimarães

    01/11/2014 at 16:58

    Muito obrigado Raquel Moreira!
    Fico muito contente por poder contar com os teus comentários muito inteligentes, que reciclam ideias dos meus artigos para construir novos pensamentos!
    Um beijinho!

  3. Pedro Marques Pinto

    01/11/2014 at 20:09

    Para Rousseau, ao contrário de Hobbes, o homem é naturalmente bom e vive, inicialmente, num estado idílico e romântico de sociabilidade, dominado pelos valores da liberdade e da igualdade, apenas subvertido ontologicamente pela criação da injustiça e da desigualdade através da fundação da propriedade privada e da divisão do trabalho. Daí brota o egoísmo, a corrupção, a exploração do homem pelo homem (tal como Marx irá teorizar posteriormente na História). O homem é, assim, livre mas acha-se acorrentado pelas grilhetas da coacção social. O explorador, o opressor, apropria-se do domínio da lei e da razão jurídica para submeter o outro a um regime de servidão (a colonização, o esclavagismo, o feudalismo ou o capitalismo são, no fundo, herdeiros ideológicos desta antinomia básica). Para superar este obstáculo primordial que impede o homem de alcançar o supremo estado de liberdade e dignidade-de-si, Rousseau entrevê na pedagogia (Émile, por exemplo) e na teoria do contrato social (obra homónima – o poder assenta na soberania popular e não no caracter absoluto e indisputável personalizado na figura do rei) os factores inalienáveis que permitirão ao homem, qual prometeu, emancipar-se pela via da cultura e do direito do estado de menoridade a que se via condenado pela esfera do social.

    Acho inteligente a relação que estabeleces entre a filosofia de Rousseau (iluminista, prenunciador do movimento romântico e da democracia moderna) e o génio incompreendido do médio ofensivo, do puro dez, seguindo as tuas palavras, um jogador tecnicamente competente, capaz de se isolar/autonomizar do restante colectivo para procurar o seu próprio espaço e liberdade de criação no terreno de jogo. Como dizes, são muitas vezes jogadores acusados de serem demasiadamente individualistas, mas que contribuem decisivamente para a construção e consolidação de um modelo e estilo de jogo. São os cérebros iluminantes da equipa, pelos quais passa toda a concepção estratégica e táctica. Como “bons selvagens” que são, assumem a heterodoxia e a rebeldia intensa como idiossincrasias do espírito inscrito no plano da comunidade futebolística.

    Um abraço amigo david
    PS: um pequeno reparo: Rousseau era suíço e não francês

  4. David Guimarães

    02/11/2014 at 04:27

    Amigo Pedro,
    Obrigado pelo reparo que fazes à nacionalidade de JJ Rousseau. Embora sendo um dos “rostos” da revolução francesa e ter morrido em França, este filósofo nasce na Suiça. O que procurei com este artigo, foi ter uma postura que combate o maniqueísmo e os antagonismos exacerbados. O “bom selvagem” e o “estado natureza” eram incompatíveis com uma sociabilidade iluminada e progressiva. Os números 10 actuais são tidos como jogadores selváticos onde somente a anulação do seu génio permite o enquadramento numa equipa equilibrada e “adulta”. O que pretendo afirmar é que a sua genialidade também é evolutiva, racional, progressiva e não somente inata. O colectivo tem de arranjar forma de enquadrar estes talentos, porque os títulos ganham-se com os jogadores mais habilidosos, tecnicistas e desequilibradores. Não que estes criativos não possam trabalhar sem bola e aprender a não descompensar a equipa, mas a sua capacidade de definição deve ter primazia na mecanização de jogo. Todos os jogadores podem ir melhorando a sua abnegação com o treino. O treino pode melhorar diversas aptidões técnicas. Defendo que os génios da bola adoptem posturas abnegadas, mas a abnegação, por mais incessante que seja, não traz genialidade, necessária para ganhar troféus e ficar na história.
    Um forte abraço!

  5. Carlos Moreira

    03/11/2014 at 02:21

    Um artigo que vai muito além do Futebol

    • David Guimarães

      03/11/2014 at 02:39

      Carlos,
      Muito obrigado pelo comentário e também por reconheceres e apreciares a minha odisseia futebolística por caminhos pouco explorados. O futebol é tão nobre quanto a nobre filosofia, a nobre poesia, a nobre literatura, a nobre pintura, a nobre escultura, o nobre cinema e o nobre teatro… As coisas são o que delas fazemos, quando a nossa perspectiva é digna o prisma dignifica-se.
      Um abração!

  6. Carlos Martins

    06/11/2014 at 01:57

    Amigo David,

    Muito interessante a forma como, nos teus artigos, consegues interligar várias áreas e disciplinas do saber…
    Quanto ao Quintero, acho que esta vai ser a época da sua afirmação plena. Têm sido mais as vezes em que é titular do que as que fica no banco…

    Continua! 🙂 Um abraço

  7. David Guimarães

    06/11/2014 at 15:37

    Muito obrigado Carlos!
    Já vem com um ano de atraso essa afirmação! O duplo pivot descabido na temporada passada preconizado por Paulo Fonseca, até poderia ser um bom sistema para encaixar Quintero como 10, mas nem isso foi alvo de uma ponderação cuidada!
    Um forte abraço!

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