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A FINAL DA TAÇA E AS REVOLTAS ESTUDANTIS DE COIMBRA

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É inegável que o futebol funcionou como um importantíssimo veículo de propaganda para o Estado Novo. Não excluindo essa sua importância para a fortificação e propagação da ideologia dominante, é crucial igualmente compreendermos que este fenómeno desportivo foi também apropriado e utilizado como um meio difusor de contestação ao regime, como tal, funcionando como contrapoder.

Este seu potencial dúbio e antagónico, onde para além do poder, serviu os seus oposicionistas, pode ser aferido através de um exemplo arquétipo, a final da Taça de Portugal que opôs o Benfica à Associação Académica de Coimbra, numa partida realizada no Estádio Nacional em Lisboa, no ano de 1969 (período que marca a germinação e o alastramento das revoltas estudantis). O desporto rei foi neste enquadramento eficazmente instrumentalizado para ferir o regime ditatorial (na época chefiado por Marcello Caetano), fazendo circular as reivindicações contestatárias dos estudantes, que corajosamente verbalizavam em público os anseios e exigências da grande maioria da população portuguesa.

A década de 60 ficou indelevelmente marcada por inúmeras manifestações e rebuliços sociais, alguns muito preocupantes e desestabilizadores para os salazaristas. 1962 e 1965 já haviam sido anos turbulentos, mas 1969 pode ser considerado como o início da morte do Estado Novo.  A partir de Abril desse mesmo ano ocorrem gigantescas manifestações estudantis despoletadas em Coimbra, criando um caldo efervescente que sobressaltou as hostes ditatórias. O jogo da final de 22 de Julho foi o palco apropriado para a ebulição de todo aquele fervilhar político, onde os ideais de liberdade, universidade livre, redução de policiamento, ensino democrático e modernizado, eram o combustível daquelas consciências enraivecidas e com sede de mudança.

A manifestação de 1969 é reflexo do amadurecimento da sua massa crítica, alimentada com robustez pelas anteriores manifestações de 1962 e 1965 e, fundamentalmente, pelo tremor que fora o Maio de 68. Fora assim criada uma “comunidade estudantil”, com consciência grupal, solidariedade e coesão, onde vegetavam princípios norteadores de um unívoco itinerário e finalidade: a construção de uma democracia. É essa comunhão universitária e os indivíduos que a compõem que se manifestam no Estádio Nacional, provocando um autêntico terramoto, cujas réplicas foram impiedosas para o já esboroado salazarismo.

O arvoredo do Jamor que circundava a “catedral dos desportistas portugueses” não conseguiu proteger o já serôdio e putrefacto regime do estiolamento total. O desfasamento em relação às democracias europeias era gritante, o distanciamento relativamente às dinâmicas económicas, sociais e académicas era abismal, o comportamento institucional colonialista alicerçado em narrativas de êxtase epopeico, expansionista e evangelizador, era contrário aos desígnios das Nações Unidas que apelavam aos autonomismos nacionais dos territórios colonizados. Considerada incomportável pela sociedade portuguesa (ceifadora de inúmeras vidas e consumidora de 40% do orçamento do Estado), a guerra ultramarina era desprezada, sendo o seu fim uma exigência inegociável.

Solidários com este macro contexto, os estudantes conimbricenses repudiavam também alguns vícios institucionais universitários não inelutáveis e considerados de esconjura inadiável. A politização imbuída de um tradicionalismo “bafiento” estava agarrada à academia, que servia como um mero viveiro para futuros quadros estatais. Esse academismo para o dirigismo não produzia mais do que um ensino medíocre e estagnado, onde o progresso científico não tinha meios para se consumar.

O dia 17 de Abril de 1969 é o eclodir de todas estas consciências liberalizantes que inquietavam o território nacional. Aquando da inauguração oficial do Edifício das Matemáticas, presidida pelo chefe do Estado Américo Tomás, o presidente da Direcção- Geral da Associação Académica de Coimbra pede a palavra para reportar os “problemas que afligiam a juventude, a Universidade e o país”, repto que lhe foi negado pelas autoridades do Estado Novo. Nesse dia primaveril, os estudantes ostentavam dísticos onde se podiam ler frases como: “democratização do ensino”: “em Portugal há cerca de 40% de analfabetos”; “estudantes no governo da universidade” ou “exigimos diálogo”.

A recusa de expressão ao presidente da Associação de Estudantes foi o incendiar para a crise estudantil de 1969. Com início nas margens do Mondego, ecoou noutras zonas do país, sendo o clímax atingido nessa partida de futebol em Lisboa.

Ainda na meia-final da competição, quando se defrontaram Sporting e Académica em Alvalade ficou perceptível a coalescência futebol/contrapoder. A equipa conimbricense, composta apenas por estudantes universitários apresentou-se de branco-luto (a cor tradicional do clube é o preto), com todos os jogadores a utilizar uma braçadeira escura, símbolo que atesta a solidariedade para com os manifestantes que assoberbavam as ruas. No jogo da segunda-mão em Coimbra, a equipa dos estudantes vestiu de preto e não utilizou braçadeiras, embora tenha utilizado umas listas brancas sobre o emblema da Associação, em nova postura enlutada.

Perante esta conjuntura social trémula, o Governo abre alguns precedentes para abordar a incómoda final. O Presidente da República, ao contrário do que invariavelmente ocorria, não compareceu no estádio e por conseguinte não entregou o troféu ao capitão da equipa vencedora, nenhum constituinte governamental nem alta patente do Estado acompanhou presencialmente a peleja e a RTP ficou também proibida de transmitir o acontecimento (algo que nunca acontecera desde que o fenómeno televisivo grassou em Portugal).

Durante o jogo milhares de comunicados foram soltos a partir de pontos estratégicos e esvoaçariam livremente por todo o estádio, dezenas de dísticos, cartazes e faixam foram partilhadas de mão em mão em redor do estádio. Todos os adeptos (que protagonizaram uma das maiores enchentes de sempre no Estádio Nacional) ficaram a saber as razões da discórdia e da luta estudantil.

A vitória da Académica no encontro era crucial para o apogeu da manifestação orquestrada, visto que estava combinado que o capitão da equipa de futebol entregaria o troféu ao presidente da Associação Académica Alberto Martins, numa dedicação e homenagem a toda essa comunidade contestatária. A 10 minutos do término da partida, Manuel António colocou a Académica a vencer por 1-0, mas Simões, passados 4 minutos, restabelecia a igualdade. O golo da vitória do Benfica foi marcado por Eusébio, inviabilizando assim uma tarde plenamente bem-sucedida para os revoltosos de capa e batina.

Antes da final da Taça de Portugal de 69, a turbulência estudantil estava circunscrita a Coimbra, um fenómeno regional de expressão reduzida e pouco ameaçadora para o poder vigente. A partir do Estádio Nacional, a capital do país entrelaçou-se com as reivindicações vindas do Mondego, proporcionando um desaguar de um espírito democrático, liberal e revolucionário, que foi uma estucada impiedosa para fazer finalmente cair um regime de repressão sufocante e enquadramento totalizante, que aniquilava impiedosamente tudo aquilo que saía fora da sua cosmovisão.

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6 Comments

  1. Raquel Moreira

    01/06/2015 at 10:46

    Interessante lição de história. Bem vindo de volta, com artigos que analisam o futebol como um “espelho” das circunstâncias históricas e sócio-politicas de cada época.
    Esperamos por mais. Parabéns.

  2. David Guimarães

    01/06/2015 at 14:11

    Mais um excelente comentário, como sempre! O Desporto rei é apropriado pelos mais variados quadrantes e em várias épocas distintas. O seu potencial transmissor e simbólico é inesgotável e camaleónico.
    Um beijinho!

  3. Carlos Martins

    01/06/2015 at 15:07

    Mais um excelente artigo, amigo David. Os teus textos demonstram sempre uma preocupação pela verdade e pela exactidão dos factos históricos.
    Reflexão interessante!
    Continua! Um abraço

  4. David Guimarães

    01/06/2015 at 15:13

    Muito obrigado amigo Carlos, é minha obrigação ter essa correcção!
    Um forte abraço!

  5. Rui Sousa Pinto

    03/06/2015 at 17:44

    Caro David,

    Como sempre os seus artigos enquadram e bem o fenómeno desportivo no contexto mais alargado da sociedade em que se insere. É sempre bom recordar, para as pessoas como eu contemporâneas dos factos, ou mostrar, àqueles que os não viveram, que a liberdade, que hoje nos parece uma coisa absolutamente natural, nem sempre existiu e que o 25 de Abril, quanto mais não fosse por isso, valeu e continua a valer a pena!
    Abraço

  6. David Guimarães

    03/06/2015 at 21:31

    A Liberdade é aquilo que nos torna humanos, sem ela não nos consumamos enquanto espécie. Liberdade ou Morte!
    Um abraço grande e muito obrigado!

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