Educação

Cátia Oliveira: “Ser voluntário implica confrontarmo-nos com os nossos próprio medos, combatê-los e aprender com eles”

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Por contactar regularmente com dezenas de voluntariados, Cátia Oliveira demonstra alguma preocupação com a crescente perspetiva egocêntrica com que algumas pessoas decidem fazer voluntariado. “Muitos aparecem um dia e desaparecem quando já não lhes apetece. Por vezes, não há um sentido de responsabilidade. Esquecem-se ou não têm por hábito pensar que têm impacto na vida dos outros”, lamenta. A assistente social apela a uma reflexão sobre a responsabilidade social dos cidadãos sobre o papel na sociedade a nível local, porque a maioria das pessoas move-se pontualmente por determinadas causas.

“Muitos aparecem um dia e desaparecem quando já não lhes apetece. Por vezes, não há um sentido de responsabilidade. Esquecem-se ou não têm por hábito pensar que têm impacto na vida dos outros”

Para Cátia Oliveira, os grandes problemas da história da humanidade têm sido consequências da falta de diálogo intercultural, empatia e tolerância que tem caracterizado as relações humanas. “Muitas vezes, as pessoas preocupam-se com questões globais, sem pensar e agir localmente, o que acaba por dificultar a nossa capacidade de compreender o mundo. Apesar de sabermos que cada um de nós vem de um contexto socioeconómico diferente, muitos vivem na sua bolha, sem refletir sobre o que existe ao seu lado”.

Imagem cedida pela entrevistada

Assim, a coordenadora d’O Meu Lugar no Mundo chama a atenção para a importância que o voluntariado tem no reconhecimento, em cada um de nós, de uma responsabilidade social. “Ao proporcionar a nossa deslocação para o lugar do outro, o voluntariado possibilita uma consciencialização das desigualdades e permite a construção de um futuro promitente e solidário, onde os direitos de todos sejam respeitados”, explica.

O trabalho voluntário permite entender o contexto do outro, recebê-lo, aceitá-lo e fazer o que está ao alcance de cada pessoa, para ajudar. Para Cátia Oliveira, “o voluntariado ajuda-nos a desconstruir as realidades que se encontram ao nosso lado invisibilizadas. Através do testemunho do outro, aprendemos a tolerar e a comunicar com contextos completamente diferentes do nosso”. Na sua perspetiva, por permitir o contacto com diferentes contextos, o voluntariado promove a desconstrução de estigmas sociais e, por isso, permite a humanização tanto a nível pessoal como profissional dos voluntários.

Face à sua longa experiência tanto como voluntária como com voluntários, Cátia Oliveira chama a atenção para o caráter transformador do voluntariado: “Deparamo-nos com dúvidas e com questões difíceis de resolver. Apercebemo-nos que erramos também, muitas vezes, ao colocarmos determinados indivíduos em caixas. Não compreendemos que um indivíduo é composto por várias camadas, fruto de um contexto que o molda”.

“o voluntariado ajuda-nos a desconstruir as realidades que se encontram ao nosso lado invisibilizadas. Através do testemunho do outro, aprendemos a tolerar e a comunicar com contextos completamente diferentes do nosso”

Ao longo da sua vida, Cátia Oliveira assistiu de perto ao crescimento de vários voluntários e ao desenvolvimento das suas capacidades de comunicação, de relacionamento e interação com as pessoas. Na coordenação dos novos voluntários, a assistente social adverte que “ser voluntário implica confrontarmo-nos com os nossos próprios medos, combatê-los e aprender com eles. Muitos voluntários chegam à associação ainda no primeiro ano da faculdade muito tímidos. Com o passar do tempo, acabam por ganhar confiança e revelam-se ótimos oradores, desenvolvendo competências que serão bastante úteis na sua vida profissional”.

Atualmente, cerca de 37 voluntários integram a equipa da associação O Meu Lugar no Mundo. No número 289 da rua Anselmo Braamcamp, no Porto, a associação coordenada por Cátia Oliveira é responsável por acolher dezenas de crianças, do 1º ao 3º ciclo, diariamente, após o período das aulas. Desde o auxílio na aprendizagem escolar até à educação para a cidadania, o objetivo da associação centra-se “em ajudar estas crianças a desenvolver competências para resolver tarefas de maneira autónoma, tanto numa perspetiva escolar como psicossocial”.

 

Para combater os níveis elevados de insucesso escolar, registados na zona do Bonfim, em crianças provenientes de contextos socioeconómicos mais vulneráveis, era necessário dar resposta aos agregados familiares que não tinham possibilidade financeira para as integrar noutro tipo de serviços. Cátia Oliveira e um conjunto de voluntários assumiram essa responsabilidade e, após 7 anos de trabalho n’O Meu Lugar no Mundo, veem os níveis de aproveitamento escolar destas crianças a aumentar.

Deste modo, a associação visa “colmatar as lacunas na aprendizagem das crianças que a escola acaba por não conseguir preencher devido à uniformização do ensino e à dimensão das turmas”. Devido à diversidade e a heterogeneidade dos alunos que, muitas vezes, não é levada em conta, o sistema de ensino acaba por não conseguir dar resposta a todo o tipo de alunos.

Segundo Cátia Oliveira, “por não terem sido estimuladas o suficiente na pré-infância, pela vivência de experiências traumáticas no contexto familiar ou até pela falta de regras ou de uma alimentação saudável em casa, a aprendizagem destas crianças acaba por ser dificultada dentro da lógica uniformizada do ensino nas escolas”. O papel dos voluntários n’O Meu Lugar no Mundo é atender às especificidades de cada um e orientar o seu pensamento, de forma que cada criança consiga adquirir autonomia para prosseguir o seu caminho na escola e na sua vida quotidiana.

“colmatar as lacunas na aprendizagem das crianças que a escola acaba por não conseguir preencher devido à uniformização do ensino e à dimensão das turmas”

Por ter percebido que “as crianças são um espelho do seu espaço familiar”, a associação O Meu Lugar no Mundo também procura compreender e ajudar as famílias a resolver os seus problemas, tendo como base a comunicação. Ao mesmo tempo, a associação trabalha tendo em vista a capacitação económica dos agregados, pedindo um valor mensal simbólico às famílias. “Por algumas famílias serem subsídio-dependentes, desempregadas ou por terem baixos rendimentos, caso surja algum imprevisto financeiro, o valor fica cancelado durante um determinado período de tempo, mas um dos objetivos da associação é fomentar a responsabilização dos agregados e desmistificar o tabu de que todos os serviços de ação social devem ser gratuitos”.

Para além do contexto familiar das crianças, outro problema raramente abordado como um entrave à plena aprendizagem é a relação entre pais e professores e entre professores e alunos. “Muitas vezes, os professores descredibilizam as opiniões dos pais e culpam as famílias das dificuldades das crianças. Também fruto de um sistema de ensino que os segregou, que não lhes deu oportunidades, que os estigmatizou e que não correspondeu às suas necessidades, as famílias veem o mesmo processo a repetir-se com os seus filhos”. Aprisionadas a rótulos provenientes do seu estatuto social, as famílias não são ouvidas pelos professores, que, consequentemente, julgam o aluno pela sua origem familiar e social.

Imagem cedida pela entrevistada

Neste sentido, a associação O Meu Lugar no Mundo também desempenha um papel na mediação das relações entre pais e professores, possibilitando a desconstrução de preconceitos de ambas as partes. Para Cátia Oliveira, o aproveitamento escolar das crianças depende tanto do modo como os seus pais olham para a escola, bem como da disponibilidade e da relação harmoniosa com os professores.

Tendo ingressado no projeto como voluntária, em 2014, desempenhando funções uma vez por semana, Cátia Oliveira desenvolveu, desde o início, uma relação forte com as crianças: “entusiasmei-me. Sempre que tinha tempo, ia para o projeto. Ia muito mais vezes do que era suposto”. Recém-licenciada em Serviço Social, acabou por assumir, rapidamente, mais responsabilidades na associação.

Inicialmente, o projeto apenas assumia responsabilidade pelas crianças do 1º ciclo do Agrupamento de Escolas Aurélia de Sousa. Mais tarde, com a transição dos alunos do 4º ano para o 5º ano, O meu Lugar no Mundo expandiu-se para o 2º ciclo e, posteriormente, para o 3º ciclo. Com o abandono do projeto por parte da antiga direção, há 6 anos, o projeto foi parar às mãos de Cátia Oliveira, que assumiu a sua coordenação. Em conjunto com outros voluntários assíduos, Cátia Oliveira decidiu criar a associação O Meu Lugar no Mundo, sem saber bem as implicações financeiras e legais que isso necessariamente requeria.

Nos últimos tempos, a associação conseguiu sobreviver autonomamente, através do pagamento mensal dos pais e dos apoios que vão criando com empresas. A Farmácia da Arrábida, por exemplo, comprometeu-se a ajudar a associação no pagamento da eletricidade e quem utilizar o código “O meu Lugar” em compras nesta farmácia, verá 10% do valor que gastou a reverter para associação.

 

 

A campanha de apadrinhamento da associação também tem contribuído para a sua subsistência. Durante a pandemia, a associação viu o seu número de padrinhos aumentar, o que ajudou bastante durante um período em que ações presenciais de angariação de fundos se encontravam impossibilitadas.

Dado o impacto positivo da associação na comunidade do Bonfim, a associação também “tem definido protocolos com a Junta de Freguesia do Bonfim, que tem financiado parte dos custos da associação, assumindo a sua obrigação enquanto entidade estatal”.

Para Cátia Oliveira, os resultados positivos que a associação tem apresentado devem-se ao apoio e entrega de inúmeros voluntários, de diferentes áreas de formação: “são os voluntários que com a sua experiência, com o seu passado e com a sua personalidade criam laços com os miúdos e ajudam-nos a alcançar os objetivos que são propostos”. Deste modo, o trabalho diário de dezenas de voluntários tem contribuído para a quebra do absentismo escolar na zona do Bonfim. Ao dar-lhes as ferramentas necessárias para a decifração do mundo, os voluntários procuram oferecer às crianças a liberdade de um futuro sem portas fechadas.

 

Artigo escrito por: Mafalda Pereira

Editado por: Tiago Oliveira

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