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Mundo Novo

Democracia em tempos virtuais

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Todo o poder emana do povo. Mas o que significam os tempos virtuais para o poder popular?

É inequívoco o poder da internet, da digitalização, e especificamente das redes sociais sobre o comportamento da sociedade. Nos últimos anos, a internet transformou-se em uma poderosa ferramenta de comunicação e demonstração da insatisfação popular. Inúmeros investigadores atribuem o peso das redes sociais nos processos eleitorais em países como o Brasil, Reino Unido e Estados Unidos da América. No entanto, a ocupação do espaço público, em ruas e praças, materializa a maior expressão popular da liberdade democrática. E a evolução do contágio do novo coronavírus colidiu com um período de protestos populares que aconteciam nas ruas, e início de período eleitoral em diversos países. Este cenário impulsiona a reflexão sobre o comportamento social de uma democracia em tempos virtuais. As celebrações do 1º de Maio e o Dia da Liberdade, este ano, mais atadas que nunca, demonstraram que é simbólica a presença no espaço público como identificação da cidadania. As proibições decorrentes da pandemia foram instrumentos necessários para reduzir os riscos de contaminação e proteger a saúde pública. No entanto, trazem um debate relevante sobre o papel da prática democrática em tempos pandémicos e digitais.

Agora as ruas estão vazias, mas as desigualdades estão evidentes, e as relações nas redes digitais tornam-se cada vez mais polarizadas e tribalizadas. A informação transforma-se em ruído em tempos virtuais, e a pós-verdade (ou a flexibilização das fake news) apresenta-se como imagens, ilusões e distração. É possível construir um ambiente de democracia plena nas redes virtuais?

Um pensamento prospetivo sobre a evolução desta democracia em tempos digitais deve considerar o que ela significa para a nossa sociedade. O JUP conversou com Teresa Sá Marques, geógrafa, investigadora, professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e responsável pela coordenação científica do Programa Nacional de Políticas de Ordenamento do Território (PNPOT) sobre pandemias, mudanças tecnológicas, liberdades individuais, democracia e redes sociais.

Teresa Sá Marques. DR

Qual a sua opinião sobre as manifestações cívicas como o 25 de abril e o 1º de Maio, e, mais recentemente, os protestos antirracistas, nos espaços públicos, dentro deste contexto de (pós-)pandemia?

A minha opinião depende muito dos princípios e situações diversificadas e depende do que está por detrás. Aqui em Portugal, como princípio, tudo que põe em causa a nossa liberdade é de questionar e nós questionamos. Eu acho que esta situação da pandemia é uma questão nova para a nossa geração, pois nunca vivemos uma situação em que fomos obrigados a ser confinados. Com isto quero dizer que, neste momento, as condições de perigo em matéria de saúde pública, ou mesmo o risco de morte, é um processo que está presente. Temos consciência que alguns de nós podem estar infetados e não termos sintomas e portanto não podemos pôr em causa os outros. Há questões que devemos refletir caso a caso.

Em Portugal, a situação é muito diferente dos outros países. Vivemos um grande período de falta de liberdade. Esta questão da liberdade tem um sabor muito positivo, mas temos noção de que tem custos, e esta limitação, no meu entender, só é questionada por questões ideológicas. Porque, genericamente, as populações estão de acordo. Está em causa uma questão essencial que é a vida das pessoas. Somos um Estado em liberdade e podemos manifestar-nos. No passado, manifestávamo-nos nas praças, no espaço público. Atualmente, há outras maneiras de nos expressarmos e o espaço público também passou para as redes. 

Falando um pouco sobre esta questão das mudanças tecnológicas, o PNPOT identifica mudanças na sociedade portuguesa, entre elas “a maior pressão sobre a democracia com uma sociedade mais multipolar e participativa”. Também pensa medidas para uma desburocratização governamental e maior envolvimento dos cidadãos através de instrumentos digitais. Pensa ser possível um futuro em que tanto a democracia quanto o governo sejam exercidos digitalmente?

Eu acho que nunca será tudo digital, mas considero que a revolução digital irá permitir o reforço da acessibilidade para um maior número de pessoas participar de forma mais ativa, sobretudo as populações mais jovens. Vamos ter logicamente um período de transição mais complexo, como em todas as mudanças, em que são os mais idosos que têm menos acessibilidade e mais dificuldade de participar ativamente na democracia, seja a nível local ou nacional. 

Mas os portugueses participam muito pouco e não têm educação para a participação. Tem de se aprender a participar. Por princípio, somos pouco participativos, e o poder é exercido sem criar condições para fomentar esta participação. Há aqui um problema estrutural e fazemos muito pouco para ultrapassá-lo.

Não há dúvida que as redes sociais são um meio que pode ser utilizado. Veja-se o caso das manifestações contra o racismo, que foram divulgadas nas redes sociais e vieram para o espaço público.

E é também um ciclo. O governo quanto mais se desburocratiza, consegue tornar-se mais eficiente para atender as demandas da população…

E cada vez mais a acessibilidade passa a ser maior. Mas o grande problema é que ainda temos de ultrapassar o facto de que nem todos têm a mesma rede, equipamentos para a aceder ou qualidade de rede para responder a estas necessidades. 

“Sinto que a sociedade está com pensamentos confinados, estamos a pensar menos. É perigoso”

Há pensadores que prospetam a democracia digital como uma possibilidade de maior transparência, enquanto outros questionam o aumento das fake news e a polarização do campo político. A sociedade está preparada para isto? 

Eu acho que não estamos preparados para isso, e não nos queríamos preparar para isso. O facto de estarmos em pleno período de pandemia faz-nos aprender e adaptar. Estamos num período diferente, as coisas já mudaram, não há volta a dar e, portanto, devemos fazer uma reflexão do que isto nos obriga e preparar a mudança. Não há um normal igual ao anterior. Temos de refletir em todas as instituições e mudar rapidamente. Sinto que a sociedade está com pensamentos confinados, estamos a pensar menos. É perigoso porque as pessoas deixam de socializar tão intensamente e de forma tão diversificada. Mesmo que estejam nas redes digitais, andam nas redes dos grupos delas e não de uma forma suficientemente diversificada. Corremos grandes riscos de criar hábitos de confinamento. 

Para os professores, por exemplo, há lados positivos em ter tempo para práticas mais individuais com os alunos. Também há lados negativos, como cada aluno ficar na sua bolha. Ser professora influencia muito a minha forma de pensar a própria sociedade. É na escola que podemos criar processos de mudança para o futuro. Olho para a escola e é lá onde as coisas mudam, os alunos entram no primeiro ano e passados alguns anos estão completamente diferentes, mais curiosos, mais interessantes, mais ativos.

Uma das coisas que sinto, e é muito recente, com as alterações climáticas e agora o racismo, é que as camadas jovens estavam a movimentar-se pouco por causas, muito amorfas em relação a tudo. Mas isto parece mudar: nas manifestações do racismo estava presente dominantemente população jovem. Eu sou de uma geração que viveu o 25 de Abril, em que a universidade e o espaço público se misturavam. Andávamos sempre em manifestações e isso tem repercussões na forma como encaramos a vida no futuro.

“O mundo vai evoluindo e temos de criar uma sociedade mais distributiva de modo que as desigualdades diminuam e haja um desenvolvimento mais próspero para todos. A pandemia veio acelerar alguns processos”

Sobre essa virtualização que o confinamento nos traz, acha que tem algo que a sociedade pode cobrar, que os governos podem fazer para que as redes se tornem menos bolhas e mais representativas da realidade?

Não penso no que o governo vai fazer por nós. Tem de se concentrar em ser o mais transparente possível e dar o máximo de informação à população – isso é fundamental e dinamizado pelos próprios processos participativos – mas não há dúvidas que nós é que temos de nos movimentar. A sociedade também se organiza nas suas bolhas e comunidades para se apropriar dos territórios em função dos seus próprios interesses, mas, independente destes processos hierárquicos, cada vez mais atuamos em rede e podemos fazer coisas que no passado não conseguíamos. Muitos projetos que estão nas nossas cabeças dependem cada vez mais de nos organizarmos para os fazer, e as redes digitais podem ser utilizadas no sentido de sairmos da nossa bolha e trazermos a oportunidade de nos organizar em função de causas com comunidades diferentes. O mundo vai evoluindo e temos de criar uma sociedade mais distributiva de modo que as desigualdades diminuam e haja um desenvolvimento mais próspero para todos. A pandemia veio acelerar alguns processos; agora vamos ver se são os que interessam mais ou não. A minha liberdade acaba quando começa a dos outros, e o confinamento mudou-a em todos. Mas devemos contrariar um processo de acomodação, adaptarmo-nos e refletir sobre este processo de mudança.