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Mundo Novo

Circulação de pessoas e bens no Novo Mundo: a transformação é para ficar?

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Desde 1985, com o Acordo de Schengen, que a União Europeia se baseia na livre circulação de pessoas. Com a COVID-19, a Comissão Europeia mostrou-se desde logo preocupada com as restrições às viagens, tendo, em maio, proposto uma abordagem faseada e coordenada para suprimir os controlos nas fronteiras internas da União, para permitir que os cidadãos pudessem começar a deslocar-se. Em junho, a Comissão recomendou que os estados-membros eliminassem estas restrições, e introduziu uma plataforma que fornece informação útil para quem quer retomar a livre circulação e o turismo em toda a Europa, a Re-open EU. Relativamente à circulação de bens, logo em março foram tomadas medidas para salvaguardar a continuidade dos serviços de transporte de carga, de modo a assegurar o funcionamento do mercado interno europeu e fazer face à crise de saúde pública.

O JUP conversou com Lígia Ferro, professora do departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), em inícios de agosto. A docente atenta que, se as pessoas não se movimentarem, ficarem em casa e não trabalharem nem estabelecerem contactos, até a nível internacional, também não vão poder produzir nem avançar, e isso vai necessariamente ter consequências económicas e sociais: “não podemos simplesmente desistir de viver, trabalhar e circular”, reflete. A professora considera que a UE está a tentar um equilíbrio entre os dois pratos da balança – as questões sanitária e económica – “sem colocar em causa a saúde”, incentivando a circulação “de uma forma muito controlada”, ao contrário de países cujo incentivo de abertura foi “irresponsável” e muito precoce, como os EUA e o Brasil, aponta a docente. Ainda assim, a situação nos países vai variando com muita rapidez, pelo que estas mudanças acabam por inibir as viagens; ou seja, a circulação “já está partida, pelo medo que as pessoas têm das condições existentes”. Desta forma, Lígia Ferro afirma que o papel da UE é “tentar oferecer alguma segurança e incentivar esta circulação”, para não colocar em causa o próprio mercado europeu nem as redes de trabalho.

O JUP entrevistou também Ricardo Cabral, professor de Economia do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG), em inícios de julho. Segundo o especialista em política económica da UE, terá sido também o medo da subida dos números de infetados pela COVID-19 a direcionar o fecho de corredores aéreos entre os países europeus, não descartando a hipótese de que estas decisões tiveram interesses políticos além dos de saúde pública. Lígia Ferro também não duvida das intenções políticas destas restrições e exemplifica com o Reino Unido: quando Portugal teve uma sequência de restrições com grande impacto para a economia, restrições que na altura não foram impostas a Espanha (um país com um nível mais elevado de mortes e casos), “há aqui toda uma série de questões económicas relacionadas”. Para a professora, a UE deveria tentar, através da negociação, conseguir uma plataforma mais coerente e que servisse de base para todos os países, com “critérios muito claros” para que essas decisões se baseassem “literalmente em questões sanitárias e não em intenções políticas”, pois a disputa pelo turismo “não se deseja no âmbito de uma UE”.

 

Consequências sociais e económicas

A pandemia veio “alterar de forma profunda a economia e a sociedade” com duas grandes crises, diz Ricardo Cabral: primeiro, veio o “tremor de terra”, com a ausência do contacto social; depois, “o tsunami”, com a crise económica. “A economia sofreu um enorme abalo e o novo nível de equilíbrio está muito abaixo do anterior”, e o cenário piora quando se tem em mente que este tipo de choques se estende no tempo e as suas consequências vão sendo cada vez “mais dramáticas”. O professor diz que, por mais políticas que sejam feitas, não acredita que um cenário de felicidade aconteça diretamente com a vacina e que “isto vai obrigar os políticos a serem muito melhores do que o que foram nas últimas décadas”.

Lígia Ferro, que é também vice-presidente da Associação Europeia de Sociologia, levanta ainda outra questão – o estilo de vida: “as pessoas já se estão a adaptar a toda uma nova forma de vida diferente, e isto é algo que perdura durante algum tempo”. A população foi-se habituando paulatinamente a viajar mais e, com as companhias low cost, começou a fazer fins de semana em qualquer cidade europeia com pouco dinheiro. A professora explicou que, tal como isto aconteceu, também agora “vai demorar muito tempo” para as pessoas mudarem o estilo de vida que foram “obrigadas a adotar”, pelo que esta pandemia “terá impactos durante bastante tempo”. “Vai demorar muito tempo a mudarmos o estilo de vida, porque esta pandemia impõe-nos uma série de restrições e medos que ficam, perduram e criam um novo modo de vida”, considera. Ricardo Cabral disse prontamente julgar não haver vacina nos próximos anos e considerou já haver sinais emergentes de que a população ia ter de se adaptar à pandemia. Como consequência, “é provável que haja menos viagens internacionais”, previu, “porque estas passaram a representar um risco”. Adiantou também que os testes ao vírus antes das viagens e o controlo da temperatura nos aeroportos poderá continuar a ser prática no futuro.

Relativamente à circulação de bens, Ricardo Cabral também acha que vão haver mudanças. Em primeiro lugar, há uma guerra entre EUA e China relativa ao comércio internacional: os EUA querem impedir a China de assumir a posição de potência ascendente, prejudicando as principais empresas chinesas. Como consequência, parece haver “um retrocesso da globalização” e “a nova globalização passa por ter mais redundância”, já que “não se pode estar dependente de empresas que estão em países com acesso ao mercado global”, diz o professor de Economia. Os blocos económicos estão muito dependentes uns dos outros, não só de empresas como de poderes políticos, pelo que podem começar a criar barreiras e capacidade industrial e de serviços nas suas respetivas áreas. Desta forma, estarão a criar os seus próprios campeões, regionais, para não dependerem do país no qual sediavam essa capacidade. Nomeadamente: tecnologia, serviços e produtos base, como, por exemplo, as máscaras. Ricardo Cabral dá o exemplo dos países do Ocidente, que antes tinham deslocalizado a produção de ingredientes para medicamentos essenciais para países como a Índia e a China.

 

A desglobalização

Num artigo do Observador, de abril, o professor da Universidade do Algarve António Covas prevê que “nos próximos anos iremos assistir a um abrandamento do processo de globalização”. O autor diz que estamos no “limiar de uma nova fronteira civilizacional que a COVID-19 apenas veio revelar em toda a sua extensão” e que um dos traços mais relevantes desta transição civilizacional é a desglobalização, “uma correção de intensidade e trajetória”. Acrescenta que “nos próximos anos iremos assistir a uma relocalização de alguns segmentos das cadeias de valor”, já que a transformação digital, segundo o autor, além de poder intensificar a globalização de algumas cadeias, pode promover a relocalização e a reindustrialização de outras, já que “a automatização industrial e a inteligência artificial permitem recuperar custos de produção significativos que anteriormente justificaram a sua deslocalização para o sudeste asiático”. Este abrandamento também vai poder trazer a regulação e a contingentação da liberdade de circulação dos migrantes económicos.

Lígia Ferro refere que a pandemia veio “colocar a nu” o modelo económico capitalista no qual se vive, “em que a interdependência é tão importante”. No seu ponto de vista, este modelo neoliberal baseia-se muito, por um lado, na interdependência económica e social entre diferentes nações, e, por outro, num desinvestimento nos serviços públicos, serviços que acabaram por revelar desigualdades entre diferentes países na forma como lidaram com o surto. As medidas adotadas para enfrentar a doença afetaram a economia e a circulação de bens e pessoas e levaram necessariamente a uma quebra no consumo e na produtividade, quer no setor público quer no privado. “Isto poderá ter consequências económicas que poderão superar a crise de 2008”, diz a docente, que considera que se tem de olhar para esta interdependência característica do mundo globalizado com seriedade e pensar em alternativas. Lígia Ferro acredita que, “se soubermos ler bem estes problemas, podemos abrir portas muito importantes para um modelo mais sustentável e amigo do ambiente”, um tema em cima da mesa mas em relação ao qual não foram tomadas “medidas políticas corajosas” para seguir este caminho.

Um artigo de Maria Encarnação Beltrão Sposito e Raul Borges Guimarães, professores do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista, explica por que razão a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia. Os autores apresentam o conceito de “Sociedade Urbana”, em que “a mobilidade espacial é atualmente muito maior do que a que tínhamos quando outras pandemias aconteceram”. Atualmente, a população depende menos das relações familiares, rompendo os círculos da casa para alcançar os da cidade e do mundo, dizem os autores, esclarecendo que a população produz continuamente concentração e busca mobilidade. Desta forma, percebemos que o novo coronavírus “tem mais condições de se distribuir espacialmente hoje do que teria há um século”. A circulação e a conectividade entre os diferentes lugares tem um peso tão importante como a localização territorial no processo da difusão espacial dos vírus, explica o artigo.

A pandemia ainda não deu tréguas, mas será que a circulação da qual estamos a falar já se adaptou ao que se espera ser o “pós”? Laboratórios por todo o mundo estão numa corrida contra o tempo para desenvolver uma vacina contra o novo coronavírus. Segundo a London School of Hygiene & Tropical Medicine, 43 projetos estão na fase de ensaios clínicos, sendo que 8 estão na fase III – a última, que consiste na inoculação da vacina em milhares de voluntários a fim de determinar se impede de facto a infeção. Mas a Organização Mundial de Saúde lembra que, até ao final do ano, é pouco provável que alguma das potenciais vacinas consiga passar nos testes de eficácia e segurança. Em agosto, Lígia Ferro explicava que, apesar de ainda se estar numa fase inicial da pandemia, “já se vê, ao nível da circulação de bens e pessoas, alguma transformação”, nomeadamente ao nível digital, com o crescimento do comércio online e a aplicação de novos avanços no campo das inteligências artificial e robótica. No entanto, esta adaptação inicial à realidade também traz desvantagens: Lígia Ferro explicou que as cadeias de abastecimento a nível mundial estão a sofrer perdas, pois lidar com a nova realidade é um desafio muito grande.

 

A virtualização do mundo

Apesar de nos próximos anos podermos assistir ao tal abrandamento da globalização, por sua vez, a difusão de ideias já é difícil de parar num mundo teleconectado. E a digitalização da sociedade não dá sinais de abrandar. Nas instituições e empresas, os efeitos da escolha massiva da tecnologia digital vão fazer-se sentir desde o modelo de organização até ao relacionamento com os clientes. As atividades profissionais e sociais podem beneficiar da virtualização, por exemplo, atividades que decorrem em escritórios, como reuniões de empresas: não são apenas as pessoas que partilham o mesmo espaço físico que podem trabalhar em conjunto, mas também outras pessoas dispersas por vários locais. A criação destes espaços virtuais é uma tarefa exigente ao nível da recriação dos tipos de interação dos participantes que a proximidade física facilitava.

Ricardo Cabral considera que o teletrabalho e a virtualização do mundo vão acelerar a redução da circulação, lembrando que há muitas carreiras que já são bastante isoladas, como administrações de empresas ou bancos: “o que se vê mais é silêncio e pouco contacto social”, contacto que, se já era reduzido, é provável que se acentue, e a tendência do teletrabalho também.

Por outro lado, a professora de Sociologia questionou logo até que ponto é que realmente o modelo de teletrabalho vai ser instalado. Lígia disse que se pode estar a falar de uma percentagem da população, em teletrabalho, que não implica a maioria. Além disso, o período ainda é de transição, pelo que não se sabe ao certo como é que se vai instalar este novo modelo de trabalho. Mas uma coisa é certa: “ao instalar-se, haverá sempre consequências para a organização social, para as relações sociais e, até no plano individual, para os próprios trabalhadores”.

Apesar de considerar o contacto online e digital uma boa opção e alternativa para estes tempos, acredita que este trabalho à distância não substitui o presencial: “as pessoas precisam realmente dos encontros presenciais”, que permitem desenvolver projetos “com outra profundidade e reflexão”. A solução poderá passar por “um modelo mais híbrido de trabalho”, que incorpore a dimensão digital mas que mantenha “muito do modelo presencial”.