Cultura
Fátima Vieira: “a cultura é a forma como nós vemos o mundo”
O que a levou a aceitar o cargo de Vice-Reitora para a Cultura e Museus da Universidade do Porto?
Eu diria que foi um convite irresistível. Eu trabalho na área de estudos sobre utopia há mais de 30 anos e costumo dizer que também sou praticante neste sentido. Eu acredito que é realmente possível mudar o mundo, e costumo dizer que a cultura é a forma como nós vemos o mundo. A oportunidade que me estava a ser dada era trazer a cultura e esta visão de que é possível realmente mudar a nossa sociedade para a dimensão da universidade. Portanto, foi um convite absolutamente irresistível para alguém como eu, que põe a utopia na prática.
Sente que já conseguiu provocar alguma diferença na Universidade e nos estudantes?
Eu penso que sim. Aliás, eu queria só sublinhar aqui o facto de, pela primeira vez, haver um vice-reitor exclusivamente para a Cultura. Além disso, tenho a sorte de ter um reitor que apoia totalmente todas estas ações, tanto que a primeira coisa que eu pedi foi as condições básicas para se notar que havia algo de novo. E essa condição básica era um espaço – e por isso é que nós temos o espaço da Casa Comum, que foi uma encomenda feita ao arquiteto Nuno Valentim.
Nós temos 14 faculdades, dispersas pela cidade, e 49 centros de investigação. Se é muito interessante, por um lado, porque significa que é uma universidade que dialoga com a cidade, por outro, tem este problema de dispersão. E o programa começou por aí mesmo, por construirmos uma Casa Comum
Todas as nossas atividades gravitam, de alguma forma, em torno de um conjunto de preocupações ou de temas nucleares. Nós trabalhamos sobretudo o tema da inclusão – cultural, linguística e todo o tipo de inclusão de género. Trabalhamos muito a ideia da igualdade. Temos tido muitas iniciativas e algumas delas até bastante importantes e com algum impacto, para lembrar, por exemplo, a importância do papel da mulher na ciência e na evolução da ciência, que muitas vezes tem sido esquecido. E esse é um trabalho que nós vamos continuar a fazer. Os pressupostos em que trabalhamos são, entre outros, a colaboração e a criação – fazemos vários workshops de performance, de pintura, do que quer que seja. Porque se eu investir na minha criatividade artística, por exemplo, sou capaz de transportar essa mesma criatividade para o meu trabalho profissional e para a minha própria vida e também para a minha atitude perante a sociedade enquanto cidadã.
Qual é a maior lacuna dos jovens atualmente?
Eu diria que é a pouca atenção em relação àquilo que se passa em seu redor, mas sobretudo, diria que lhes falta tentativa de compreensão.. Mas não a todos os jovens – de facto, devo dizer que trabalho com jovens fantásticos e tenho tido uma experiência fantástica, quer agora enquanto vice-reitora quer anteriormente nos outros projetos em que estive. Seja como for, temos de ter todos a consciência histórica das coisas para não repetirmos os mesmos erros.
Costumo dizer que sou das utopias no plural e não da utopia no singular. O grande problema do pensamento utópico é quando nós temos uma utopia que queremos impor a toda a gente. Isso nunca funciona
De que pequenas utopias estamos a falar?
Pequenas medidas podem fazer a diferença. Por exemplo, uma das utopias que mais me está a interessar agora é a chamada “cidade de 15 minutos”. Quem fala nela é o Richard Sennett, a partir do Carlos Moreno, que diz que a cidade ideal não é aquela mega-cidade, mas sim a que nos oferece pequenos núcleos onde consigamos chegar ao trabalho, a casa e às instituições principais em 15 minutos, de bicicleta ou a pé. São estas pequenas utopias que, se calhar, até estão na nossa mão fazer.
Por outro lado, outros pequenos gestos, por exemplo, as nossas competências interculturais são essenciais para a sociedade global que nós queremos. Isto não deveria ser apenas um chavão. Não deveriam ser apenas palavras que soam bem. Temos aqui tantos alunos de Erasmus, e podemos perceber a forma como veem o mundo e aprender com eles. Há um livro que eu gosto muito, de Byung-Chul Han: “A Expulsão do Outro”. Nesse livro, ele diz algo que me parece essencial para nós percebermos aquilo que temos de fazer enquanto sociedade: se eu expulsar o outro, se eu expulsar aquilo que é diferente de mim, eu fico igual a mim mesmo. Ou seja, se os meus amigos, o meu círculo de pessoas com quem eu trabalho, forem exatamente iguais a mim, eu não evoluo, eu fico igual. Nós precisamos do outro, precisamos da variedade também para evoluirmos.
O Porto não tem uma universidade, tem várias instituições de ensino superior. O Porto tem a obrigação de ser uma cidade reflexiva, pensante, moderna, hospitaleira, inovadora, criativa e todos aqueles bons adjetivos que se possa imaginar. E, portanto, se temos tantas cabeças pensantes, é quase uma responsabilidade nossa fazer com que esta cidade seja uma cidade melhor
A Universidade do Porto foi a mais procurada no concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior. O que acha que distingue a das outras universidades?
Eu acho que tem, em primeiro lugar, reconhecimento científico. E esse reconhecimento traduz-se nos rankings e também na forma como os diferentes investigadores e docentes têm vindo a divulgar os seus resultados de investigação um pouco por todo o mundo. Depois tem um outro aspeto que me parece importante: está numa cidade que tem uma escala interessante. O Porto não é demasiado grande, mas também não é pequeno e tem, enquanto cidade, uma dimensão que lhe permite os equipamentos culturais necessários. Tem, além disso, laboratórios e centros de investigação muitíssimo avançados.
Outro aspeto a destacar tem a ver com a interculturalidade. Tivemos uma estudante turca e, numa ocasião, quando lhe perguntamos porque é que, em tantas instituições em todo o mundo, ela tinha escolhido a UP, ela disse que foi ao nosso site, viu fotografias de grupos de estudantes de diferentes culturas e reparou que uma das estudantes usava um Hijab. Então pensou: “se eles têm uma fotografia de uma pessoa como eu, então isto é um sítio onde eu sou bem-vinda”. Eu fiquei muito feliz porque isto é a prova de que nós somos uma universidade internacional.
De que modo se podem erradicar os comportamentos preconceituosos e discriminatórios que ocorrem dentro da UP?
O preconceito vem sempre da ignorância. A primeira missão da Reitoria é promover a informação e há uma série de medidas culturais que podem ser difundidas. Entretanto tivemos de suspender a programação, mas nós já tivemos a semana da cultura russa, e outra moçambicana, por exemplo, bem como protocolos firmados com várias embaixadas. Na altura do confinamento, começámos um conjunto de podcasts e, neste momento, no site da Casa Comum, existem mais de 30 podcasts e mais de 200 episódios, e também é assim que nos aproximamos. Eu costumo dizer que nós não temos um programa cultural, mas um plano de intervenção cultural. Nós queremos, através da cultura, intervir e modificar. E, apesar de sermos sobretudo uma plataforma de interação com a comunidade académica, é a cidade que nós pretendemos transformar.