Cultura
O cinema entre duas distâncias
Vivemos tempos em que a palavra “distância” ganhou novos contornos. Os gestos afetivos mais naturais foram trocados por técnicas de afastamento e segurança. A pandemia trouxe uma nova realidade que obrigou a traçar uma nova cartografia do espaço onde os corpos vivem e interagem.
A arte sempre quis vencer as distâncias sociais e batalhou por uma sociedade emancipada, democratizada e unida. O teatro épico de Brecht é um bom exemplo disso, na medida em que trouxe a palco as injustiças sociais e estimulou as consciências das classes oprimidas, com vista à transformação da realidade. Com o seu trabalho, o dramaturgo alemão pretendeu reduzir essas distâncias introduzindo uma nova: a da observação. E a quarta parede tem, precisamente, como função demarcar a distância entre o que o palco denuncia e o que os espectadores sentem.
No cinema, a parede é uma presença assumida que permite a opacidade necessária para que a luz do projetor possa desenhar as formas do filme. Durante uma projeção, facilmente, esquecemos que são feixes de luz que vêm cobrir a superfície branca da tela, porque só assim conseguimos vivenciar em pleno a experiência cinematográfica. Mas, esta imersão que as imagens do cinema suscitam é de uma natureza diferente, uma vez que consegue preservar esse distanciamento. É uma imersão metafísica que ao mesmo tempo que nos parece dissolver a subjetividade, lança-nos para um além-tela misterioso onde os braços fantasmáticos do filme nos agarram e nos lançam para cima, elevando-nos para uma posição onde o nosso olhar é chamado a contemplar esses seres feitos de luz como coisas absolutamente vivas.
Esta experiência anda próxima daquela que Isaac tem, em O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira, quando uma força exterior o retira do seu ritmo quotidiano para o lançar numa distância radical, capaz de arrebatar o seu ser por completo. Esta é a distância dos que ainda possuem a capacidade de se deixarem abraçar pela estranheza do que vive nesse lugar sempre distante, onde se esconde a verdade da beleza, onde a nossa mão conhece o intocável e o nosso coração se entrega ao inalcançável mistério das coisas.
Desde essa dimensão distante, é uma certa imobilidade que intensifica o nosso olhar sobre as coisas. O realizador sueco, Roy Andersson, coloca nos seus filmes esta imobilidade, daí utilizar no seu filme Canções do Segundo Andar, a frase do poeta peruano César Vallejo: “abençoados os que se sentam”. É, precisamente, nesta posição que se encontram, tanto as personagens, como os espectadores – quase como se se contemplassem mutuamente, à distância.
Em ambos os lados é a imobilidade que permite uma nova visão sobre as coisas.
Andersson põe em cena seres cada vez mais distantes entre si e entre a natureza e o divino. Dentro deste tecido social fragmentado, existem procissões de autoflagelação, negociantes ávidos, enlouquecidos e condenados ao fracasso e poetas catatónicos que perderam a voz à força de contemplar a realidade. Andersson filma as distâncias apelando ao distanciamento.
Numa sociedade que cada vez mais se rege pelo princípio do conforto, torna-se necessário gerar desconforto. É preciso que o filme reduza a temperatura da sala de cinema, gelar um pouco o ambiente para que o calor possa aparecer não como um novo conforto, que surge para curar o estado gélido anterior, mas como uma verdadeira emoção, capaz de se elevar acima da mera complacência fisiológica. O filme passa a conquistar-nos quanto mais oferece resistência a que nele nos dissolvamos.
A distância está, então, mais na experiência que prende do que naquela que solta.
O cinema pode dar-nos a elevação necessária para percebermos o quanto os nossos laços se dissolvem por entre uma nova normalidade que nos tem separado de todos os pequenos rituais afetivos que ainda subsistiam. Por entre o distanciamento que hoje se faz regra, que o cinema nos abrace e eleve até esse lugar distante onde a união e o vínculo permanecem intactos e indestrutíveis.