Cultura
“The Show Must Go On”: As adaptações da indústria musical
O primeiro setor a ser infetado com a chegada do novo coronavírus, em Portugal, foi o da cultura e das artes. A divulgação dos primeiros casos confirmados de COVID-19, em Março, deu o mote para o cancelamento de inúmeros espetáculos, mesmo antes da declaração de estado de emergência, a 18 do mesmo mês. Aos poucos, o mundo ia-se fechando em casa e, no caso particular da indústria musical, a necessidade de se criarem alternativas e soluções para a paragem total do setor tornava-se imperativa.
O NOVO “AO VIVO”
Perante a impossibilidade de se realizarem eventos artísticos com plateia, vários músicos e entidades relacionadas com a indústria musical puseram em prática alternativas que inverteram a ordem normal das coisas: se os fãs não podiam chegar aos artistas, seriam os artistas a chegar aos fãs. Desta forma, e utilizando como palco principal as redes sociais e as plataformas de streaming, assistiu-se a um fenómeno ímpar de organização de diversos concertos e festivais nos quais se transmitia música diretamente da casa dos artistas, para a dos fãs.
De vários eventos realizados, o que obteve maior mediatismo foi, indubitavelmente, o evento solidário “One World: Together at Home”. Desenhado e construído pelos ativistas Declan Kelly e Hugh Evans, da organização não-governamental Global Citizen, em conjunto com Lady Gaga. O programa incluiu a transmissão de concertos solidários cujas receitas reverteram para o financiamento da luta contra a Covid-19.
Considerado por muitos o novo “Live Aid”, “One World: Together At Home” demonstrou um tremendo sucesso, arrecadando perto de 128 milhões de dólares e conquistando dois lugares nos Guiness World Records: mais dinheiro angariado para a caridade num festival de música remoto e maior número de artistas envolvido num festival de música à distância.
Em Portugal, verificou-se também celeridade e prontidão por parte da indústria em adaptar-se às alterações radicais no processo de consumo de música “ao vivo”. Desta forma, entre os dias 17 e 22 de março teve lugar no Instagram o festival #EuFicoEmCasa. Esta iniciativa contou com 78 artistas nacionais e foi composto por concertos com duração de cerca de 30 minutos. Contando com nomes incontornáveis do panorama musical como Capicua, Samuel Úria e The Legendary Tigerman, o festival contou com mais de 700 mil visualizações no seu primeiro dia e acabou por somar cerca de 250 mil seguidores na sua página oficial de Instagram.
A Amazing Events, por outro lado, contornou os efeitos da pandemia com a criação da plataforma “Gigs em Casa”, considerada a “primeira sala de concerem Portugal”. A iniciativa apresenta como os seus principais objetivos manter a continuidade do trabalho de profissionais independentes na área da produção de concertos, valorizar os projetos musicais através de uma transmissão audiovisual com execução rigorosa, melhorar a acessibilidade a espetáculos a um vasto público por um preço reduzido e diminuir a pegada ecológica provocada pela produção de eventos de grande dimensão. A panóplia de artistas que já “pisaram o palco” da “Gigs em Casa” é vasta e variada, contando com nomes como Kappa Jotta, Toy e Peste & Sida.
Ao longo do período de confinamento, pôde assistir-se também a um fenómeno considerável de “mini-concertos” realizados em diretos do Instagram, organizados independentemente por vários artistas, que tornaram evidente o papel essencial que as redes sociais tiveram na promoção e divulgação de trabalho artístico.
ABERTOS AO MUNDO, FECHADOS EM CASA
Com a implementação sucessiva do confinamento obrigatório por todo o mundo, milhões de artistas viram-se fechados nas suas casas, longe dos seus estúdios e dos seus colaboradores. Desta forma, vários músicos, perante uma situação particular e imprevisível, revolucionaram a forma de criar e divulgar música, sem abandonar as suas casas.
Um dos melhores exemplos de composição de um álbum de raiz em confinamento foi o da artista britânica Charlie XCX, que escreveu e lançou o seu mais recente álbum, How I’m Feeling Now, entre março e maio, a partir da sua casa. A cantora e compositora utilizou uma série de chamadas públicas, na plataforma Zoom, para anunciar o seu novo trabalho e tornou a composição num processo colaborativo com os fãs. Por meio de videochamadas, Charlie XCX partilhou ainda demos conversações com os seus produtores e pediu aos fãs para colaborarem com ideias para as canções e até para a vertente visual do álbum.
Em Portugal, o Conjunto Cuca Monga, com o lançamento do álbum Cuca Vida, representou o pináculo da superação das condições adversas e da utilização das mesmas como ferramenta de criação artística. O processo de criação e gravação do álbum foi feito na íntegra à distância, reunindo remotamente 20 músicos da Cuca Monga como os Capitão Fausto, os Reis da República e Luís Severo.
É inegável a crise que a pandemia trouxe ao setor da cultura, em Portugal e no mundo. Mas, como a História tem vindo a ensinar, é das alturas mais negras que brotam verdadeiras obras de arte. Obras essas que não só assinalam as circunstâncias difíceis como sublinham a superação e o crescimento que proporcionaram. Por tudo isto, é seguro afirmar que esta pandemia nos virou o disco, mas, com certeza, nunca mais tocará o mesmo.