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Cultura

Leituras e refúgios num mundo quente

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Ilustração de Soraia Ramalho

O mundo parou. E – um bocadinho à semelhança do que acontece no verão – a ausência (parcial ou total) do trabalho rotineiro que ordena a vida no resto dos dias, abriu alas para a decisão de como passar o tempo em que estamos de olhos abertos. Encarado um novo conceito de liberdade, neste novo Verão Quente, o calor do momento obrigou que ficássemos ao léu do nosso próprio aprisionamento.

Por sorte, os livros auxiliam neste processo de despir, e injetam doses de imaginação e rodopios voluptuosos entre mundos, tão necessários no combate ao aborrecimento. Revira-se, assim, o prisma do real, e ilumina-se o que, até então, era invisível. 

 

Tal como as velas só brilham, verdadeiramente, no escuro, um livro só desperta, muitas vezes, se for lido em lugares específicos, fiéis à sua vibração.

 

O púlpito que encabeça os sorrisos mais jovens: A Menina das Estrelas, de Jerry Spinelli. Esta é uma opção encantadora para os que querem ficar a conhecer uma figura luminosa, que ninguém tem coragem de ser. Stargirl Caraway é uma rapariga que balança ao som da própria música, inteligentemente bela e fulgurante na sua forma espontânea de ser. Deita pozinhos por onde passa, e tenta proporcionar alegria aos que a rodeiam, mas as pessoas não aceitam a sua diferença, nem recebem a sua energia positiva. Leo, o narrador, vê-se diante de um dilema: agarrar a mão de quem brilha, ainda que o deixe invisível para os outros, ou ficar-se pela normalidade, em resposta à necessidade de aprovação exterior. Em “A Menina das Estrelas”, o desenlace move-se pela coragem para dançar à chuva enquanto todos os outros estão dentro da sala; e para cantar os parabéns, na cantina, com uma guitarra havaiana. Aconselha-se a sua leitura à sombra de uma árvore, longe de vozes humanas, de forma a inspirar o silêncio da natureza e a ser possível rodar, cair e gargalhar em solitude. 

Para os jovens-adultos que apreciam histórias leves, mas suculentas, e que trazem à deriva investigações policiais, romances intrometidos e personagens que dão gosto levar debaixo do braço, o livro The Girl With The Dragon Tattoo, do sueco Stieg Larsson, é um must. Mikael Blomkvist, jornalista numa revista, vê-se enrolado num caso que o acusa de difamação resultante da publicação de um artigo polémico. Afastado da sua atividade jornalística, resolve aceitar um trabalho de freelancer que o lança numa investigação do desaparecimento de Harriet Vanger, numa ilha, e vê-se submerso num trama familiar que o incita a colher e juntar todas as migalhas de pão que encontrar de forma a clarificar o caso. Lisbeth Salander, cuja imagem lembra alguém que “acabou de sair de uma orgia de uma semana com um gangue de hard-rock”, é uma rapariga escanzelada, de personalidade pujante, e que apresenta uma especial capacidade para escarafunchar o mais ínfimo pormenor e “entrar na pele do investigado”. Em “The Girl With The Dragon Tattoo”, os destinos de Blomkvist e Salander cruzam-se num thriller borbulhante. É de referir que, sendo este o primeiro livro de uma trilogia designada por Série Millenium, há dois outros livros que esticam o contacto com as personagens. Aconselha-se a sua leitura na praia, para uma embrenha com o bruaá dos sons fustigantes que vai ao encontro do vaivém do enredo.

Para quem se delicia com frases tenras e esplendidamente escritas, Jane Eyre, um clássico de Charlotte Brontë, é, talvez, o livro procurado. De caráter épico, mas sem pompa e circunstância, a obra leva-nos pelas aventuras de Jane, contadas pela própria, desde a pequena Jane até à matura Jane. A personagem narra a sua vida de uma forma extremamente eloquente, tanto através de passagens suaves, como expondo as suas vulnerabilidades e ponderações sagazes, recorrendo a diálogos interiores, os quais ascendem a uma clareza de espírito invejável. Escrito de pena leve, recomenda-se a sua leitura numa esplanada, à tarde, com um refresco entre os dedos e saboreando as doces subtilezas da literatura pura.

De natureza similar no que toca ao realismo, Oblomov, de Ivan Gontcharov, evolui a um ritmo moroso, tal como “Jane Eyre”, embora com a particularidade de se erguer por meio do próprio ócio do protagonista. Oblomov leva uma vida de tal forma monótona que propõe ao leitor uma dualidade interpretativa: por um lado, é contagiado pela sua manha, amolecendo-o; e, por outro lado, experiencia um entretenimento identificável com a monotonia retratada – “Ao levantar-se da cama de manhã, depois de tomar o chá, voltava a deitar-se logo, apoiava a cabeça na mão e punha-se a pensar, sem poupar forças, até que por fim a sua cabeça cansava do trabalho duro e a consciência lhe dizia: chega por hoje de esforço pelo bem comum.” A “oblomovite” sofrida pelo protagonista estabelece um contraponto com a trivialidade condicionada que se conhece, criando uma hipérbole do estado melancólico humano que procura uma razão de ser. Um livro que provoca sorrisos e sentimentos complacentes, chamando por uma cama de rede no jardim, sôfrega de uma “doce ociosidade”. 

Para os de idade mais avançada, que pretendem um breve livro em qual assentar, E a noite roda, de Alexandra Lucas Coelho, é uma opção viável e digna de imersão. Simples, direto e que roda entre dias e noites de uma repórter que viaja de lugar em lugar. É o primeiro romance da autora, e, apesar da alternância de proscénios, mantém-se fiel ao fio condutor: uma história de amor entre dois jornalistas que dura entre pausas, cessa no passo seguinte e perdura dentro do peito – e “fica só prazer puro, como flor-de-sal. Se o prazer correr mal, teremos sempre o dever cumprido.”. Indo ao encontro do nomadismo do livro, a sua leitura é aconselhada para momentos de viagens que deem aso ao seu suspense enternecedor. 

Poucas, mas esperançosamente apropriadas, ficam afixadas algumas propostas de leituras para quem confia nos livros para se refugiar – deixando-se levar pela melhor música, que acaba por, muitas vezes, se resumir ao silêncio do mundo e ao coaxar dos pensamentos suscitados pelas palavras engolidas.