Ciência e Saúde

Nos bastidores da COVID-19 há cientistas unidos pelo mesmo combate

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O ano de 2019 estava a terminar quando um vírus desconhecido começou a infetar a população da província chinesa de Wuhan. Este foi o local onde teve início a doença que viria a designar-se COVID-19. Desde então, os cientistas têm-se unido para identificar o agente infeccioso (o vírus SARS-CoV-2) e perceber a dimensão dos danos por ele causados. Diferentes áreas da ciência dão o seu contributo neste que se viria a verificar um longo combate – sendo duas das suas frentes assumidas por matemáticos e por virologistas. 

Ao JUP, Daniel Kuritzkes, professor na Harvard Medical School (EUA) e responsável pela Divisão de Doenças Infeciosas do Brigham and Women’s Hospital (Boston, EUA), afirma que “o rápido isolamento e sequenciação do genoma completo do SARS-CoV-2 teve um profundo impacto na habilidade para controlar a pandemia por COVID-19”. De acordo com o docente, a sequenciação do genoma do vírus e a partilha deste conhecimento permitiu diferentes acontecimentos: o desenvolvimento de testes de diagnóstico específicos para detetar o novo vírus; a elaboração de estudos filogenéticos, que facilitou a perceção da forma como o vírus se disseminaria globalmente; a triagem de possíveis drogas a administrar em pacientes, sem a necessidade de recorrer a laboratórios de elevados níveis de biossegurança; e a caracterização de uma proteína (denominada Spike) que poderá servir para desenvolver possíveis vacinas. “Todo este progresso se deu em apenas seis meses desde que a COVID-19 foi primeiramente detetada em Wuhan, China”, sublinha Daniel.

Nathalie Grandvaux. DR

A matemática dos modelos epidemiológicos

Conhecer um novo agente infecioso não fica apenas a cargo da Virologia. A Matemática revela-se essencial na previsão do seu comportamento e há vezes em que o intercâmbio entre diferentes áreas é basilar. Um desses casos poderá ser o dos Modelos Epidemiológicos – modelos que permitem fazer previsões sobre o comportamento de um vírus. Nathalie Graundvaux, docente e investigadora da Universidade de Montreal (Canadá) e presidente da Canadian Society for Virology, em contacto com o JUP, explica que “estes modelos diferem de acordo com quem os constrói”. Normalmente, são elaborados por pessoas de diferentes áreas: epidemiologistas, matemáticos, estatísticos e bioinformáticos. “Os virologistas estão menos envolvidos, mas os dados gerados por eles são usados para a construção destes modelos. Eles são necessários para os governos tomarem decisões – e, espera-se, boas decisões”, aponta. “Como as decisões não podem ser tomadas com base em factos, eles precisam destes modelos”.

De acordo com Óscar Felgueiras, docente no Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) e membro de uma equipa da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte, “existem vários modelos com diferentes propósitos – alguns mais sofisticados do que outros”. Ao JUP, o docente conta que “estes são essencialmente matemáticos e resultam da necessidade de perceber um determinado fenómeno, que é modelado. A área da epidemiologia tem modelos estabelecidos e, dentro de cada modelo, existem diferentes formas de estimar determinados parâmetros”.

“Eles são necessários para os governos tomarem decisões – e, espera-se, boas decisões. Como as decisões não podem ser tomadas com base em factos, eles precisam destes modelos”

Nathalie recorda que “cada vírus é diferente – sendo que há vírus que, apesar de pertencerem a uma mesma família, têm comportamentos diferentes”. Segundo a investigadora, este foi um dos problemas iniciais com a pandemia causada pelo novo coronavírus. “Modelos de previsão são construídos com base no que se conhece de vírus próximos, como é o caso do SARS-CoV e o MERS-CoV. De qualquer forma, o SARS-CoV-2 comporta-se de uma forma muito diferente. As diferenças maiores residem no facto de as pessoas assintomáticas, ou pessoas com poucos sintomas, transmitirem o vírus. Com o SARS e o MERS é fácil rastrear e isolar pessoas infetadas. Com o SARS-CoV-2, como se rastreiam e isolam pessoas que não têm sintomas? É difícil incluir este parâmetro nos modelos. Mesmo hoje, não sabemos exatamente como tantos assintomáticos foram infetados”, comenta.

Óscar Felgueiras também realçou a dificuldade em incluir os casos assintomáticos nos modelos epidemiológicos e destacou um conjunto de problemas associados a este tipo de ferramenta. “Um dos princípios básicos de qualquer modelação é que se assume alguns pressupostos de partida e, muitas vezes, quanto mais parâmetros se inclui num modelo, maior é o erro a ele associado”, explica. “Como existem vários parâmetros a determinar, o erro propaga-se e começa a ser muito complicado ter modelos que deem informação válida”, acrescenta.

Pedro Esteves. DR

A incerteza das previsões

Segundo o matemático, um dos erros associados aos Modelos Epidemiológicos é a fiabilidade dos dados, uma vez que “o número de casos que é divulgado pelos diferentes países padece de muitos problemas”. Esta fiabilidade pode dever-se a fatores como os critérios de testagem usados por cada país e os atrasos de notificação. No caso dos critérios de testagem, segundo Óscar, estes constituem um “grande desafio” na modelação e diferem de país para país. “Há países que testam apenas quem tem sintomas e há países que fazem rastreios a partes de uma população – como o nosso, por exemplo –, sendo que há grupos que estão constantemente a ser rastreados”, comenta o docente. Neste sentido, tendo em conta que são usados diferentes critérios de acordo com cada país, não é correto comparar de forma direta o número de casos detetados em países diferentes.

De acordo com Pedro Esteves, docente da FCUP e responsável pelo grupo de investigação Immunity and Emerging Diseases do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO-InBIO), há fatores que se revelam basilares na construção destes modelos. Ao JUP, o docente afirma que “um dos problemas associados à construção de modelos epidemiológicos tem que ver com a base de dados disponível”. Outros problemas estão relacionados com a representatividade da amostra, os critérios de testagem e com as vias de infetibilidade assintomáticas, o que leva à perda da identificação de muitos casos. “Tudo isto se traduz na fiabilidade dos dados. Um grande grau de incerteza está associado a uma grande margem de erro”, comenta o investigador.

“um modelo pode dar uma informação para um país e dar outra informação completamente diferente para outro, dependendo de todas as variáveis que estão em jogo”

Os atrasos de notificação também constituem uma fonte de incerteza neste tipo de previsões. Este fator está associado ao facto de nem todos os casos demorarem o mesmo tempo a “entrar no sistema”. Óscar Felgueiras sublinha que um tipo de atraso está associado ao paciente. “Existem pacientes que reagem mais rápido e outros que demoram mais tempo a recorrer aos serviços de saúde. O tempo que demoram a realizar o teste e a serem detetados como casos também é muito variável”, explica. Para além disto, este problema pode também dever-se ao elevado número de casos diagnosticados que, devido a fatores como “atrasos dos sistemas de informação”, demoram a ser confirmados oficialmente. “Todos estes atrasos, somados, fazem com que os modelos mais sofisticados, que impõem vários ingredientes, sejam altamente propensos a erro”, comenta o matemático.

Óscar Felgueiras. DR

Segundo Pedro Esteves, estes erros seriam minimizados se os critérios de testagem fossem sempre os mesmos e se os dados fossem analisados de um ponto de vista regional. “Numa zona com uma população mais envelhecida, os parâmetros deveriam ser adaptados de acordo com as diferentes condições encontradas na região – o que não significaria que houvesse mais casos”, exemplifica.

O “Rt” é um dos indicadores determinados a partir destes modelos. Este indicador representa o número de pessoas, em média, a quem um infetado passará o vírus. Segundo o matemático da FCUP, a utilidade prática destes indicadores é “relativa”, tendo como principal utilidade “conseguir contar uma história passada”: “depois de já se ter recolhido informação consolidada, em que os dados estão minimamente bem tratados, olhamos para trás e o Rt permite-nos ter uma noção do desenrolar da história – neste sentido, o Rt é um bom indicador”. “Para o tempo real, esse indicador tem alguns problemas”, acrescenta.

O futuro: modelos epidemiológicos e conhecimento sobre o vírus 

No futuro, segundo Nathalie Grandvaux, “novos modelos epidemiológicos deverão ter em conta a transmissão assintomática”. A investigadora recorda que já foram realizados estudos nos quais foram testadas comunidades independentemente dos sintomas e realça a importância de se recolher o máximo de dados possível para a elaboração de modelos “mais refinados”. Já Pedro Esteves considera esta uma boa altura para “caracterizar os vírus que estão a circular nas populações selvagens e domésticas” – o que possibilitará a identificação de possíveis vírus prejudiciais para o Homem. A isto acresce a importância de não destruir florestas e o meio ambiente – evitando o contacto com outros agentes patogénicos prejudiciais para a nossa saúde. “Só assim se evitará o surgimento de novos problemas como este”, afirma o docente.

“Por agora, há uma quantidade extraordinária de dinheiro para investigar a SARS-CoV-2. Uma vez finalizada a pandemia – e esperemos que finalize brevemente –, isso será claramente mais difícil”

De acordo com a docente da Universidade de Montreal, as condições têm-se reunido para a evolução do conhecimento em virologia. “Para os vírus respiratórios que causam infeções agudas, é raro termos a capacidade de reunir tantos dados. Com a magnitude e duração da disseminação desta pandemia ao longo do globo, nós recolhemos uma quantidade incomum de amostras e informações – o que trará conhecimento para adquirir por anos e anos”, afirma. “Sem dúvida que aprenderemos muito sobre vírus através do estudo do SARS-CoV-2”, acrescenta. 

Daniel Kuritzkes. DR

A docente e investigadora destaca ainda a importância da atual “quantidade extraordinária” de verbas disponível para a investigação sobre o SARS-CoV-2. Ainda assim, deixa um alerta: “Uma vez finalizada a pandemia – e esperemos que finalize brevemente –, isso será claramente mais difícil”. “Se o financiamento não for sustentado, nós perderemos uma oportunidade única para aprender tudo o que conseguirmos a partir deste vírus, que nos poderá informar e permitir o desenvolvimento de ferramentas essenciais para combater vírus emergentes. Uma vez controlada a pandemia, o financiamento desaparecerá”, aponta.

Para Daniel Kuritzkes, “os maiores desafios” para o futuro serão rastrear a diversidade viral ( incluindo a resistência ao sistema imunitário e a resistência aos antibióticos – caso se suceda), e perceber se as proteínas virais são importantes para desencadear a cascata inflamatória que leva a lesões pulmonares graves e a manifestações extrapulmonares. Para além disto, o docente considera essencial perceber porque é que alguns pacientes permanecem positivos para SARS-CoV-2, apesar de terem recuperado a sua saúde, e se esses pacientes permanecem contagiosos para outros. Determinar se os pacientes poderão ser reinfetados e distinguir uma reinfeção de uma infeção prolongada também constam da lista de objetivos para o futuro.

 

Artigo elaborado por Álvaro Paralta.

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