Mundo Novo

De regresso às origens

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Tento não utilizar muito generalizações. Acho-as promotoras de discriminação, adubos para estereótipos e preconceitos. (Por exemplo: As mulheres são histéricas e a única coisa que os homens querem é sexo. Acredito que existem, assim como conheço, muitos indivíduos que conseguem provar estas noções erradas.) Acredito, no entanto, que a generalização que de seguida irei fazer não se encontra muito longe da realidade. Acho que se pode afirmar que, em diferentes temas e dimensões, durante esta quarentena e tempo de pandemia todos nos perguntámos: e agora? Como vai ser daqui para a frente?

As pressões económicas e financeiras aumentaram drasticamente. Alguns preocupam-se com o ganha pão, com pôr comida na mesa. Muitos já procuram novos trabalhos ou mesmo sítio onde viver, com rendas minimamente acessíveis. Há quem se preocupe com a própria saúde, a dos pais ou dos avós. Outros, como eu, com mais sorte ou privilégio, tiveram o tempo e o espaço para pensar noutras coisas.

Imagino muitas vezes o tempo em que vivemos em forma de gráfico. Encontramo-nos, neste momento, no ponto onde as coordenadas “Pandemia: Covid-19” e “Alterações Climáticas” se cruzam (haverá, decerto, outras variáveis que poderiam ser adicionadas, mas para este artigo bastam estas). De certa forma, sinto que vivo num momento histórico, possivelmente extraordinário. Apesar disto, as alterações climáticas não ocupam intensivamente a cabeça de todos e considero a possibilidade que tenho em preocupar-me com as mesmas um sinal de privilégio. Não somos muitos os que podem, sendo, no entanto, importante que o façamos. E considero importante porque inegavelmente, sem mundo para vivermos, todas as outras preocupações que nos assaltam deixarão de ser relevantes.

Ora: e agora? Como vai ser daqui para a frente? Que relação queremos com a Natureza? Em que dimensões devemos exigir mais dos governos? Onde e como podemos nós mudar a cultura que nos influencia?

Sou, muitas vezes, algo ideológica, mas não sem fundamento. O resto do artigo e as ideias nele expostas têm raízes em tipos de vida já experimentados, em leituras e documentários, em muitas discussões e conversas com amigos e, em grande parte, por ter tido a sorte de crescer no campo. Mais do que comprar apenas roupa sustentável, tornarmo-nos todos vegetarianos ou reduzirmos o nosso consumo de plástico, acredito no regresso às origens. Acredito no reduzir a distância, muitas vezes mais emocional do que física, que nos separa da Natureza. Ao recuperarmos a proximidade que, em grande parte, nos foi roubada pelo estilo de vida culturalmente aceite na atualidade, todas as outras mudanças brotarão, encadeadas.

Então resta-nos uma simples reflexão: o que é que, no modo como vivemos a nossa vida, nos distancia da Natureza?

Assim de repente, a necessidade que temos vindo a desenvolver por mais tecnologias e por níveis de conforto cada vez mais elevados faz todo o sentido, dada a vida de constante stress (muitas vezes inconsciente) que hoje em dia levamos. Apesar de tudo, é nos tempos de maior agitação que o meu corpo, antes da minha cabeça, implora por um descanso do lufa-lufa do dia-a-dia, dos barulhos incessantes, das tecnologias, das pressões sociais. É nos tempos de maior agitação que o meu corpo, antes da minha cabeça, implora pelo regresso à Terra, pelo regresso às origens.

Ultimamente lembro-me muitas vezes de uma frase de uma música que diz: “Subiremos descalços este monte”. Quando penso nesta frase, sinto, em primeiro lugar, os meus pés na terra, molhados pelo orvalho que ainda cobre o chão. Sinto o frio desta água a subir-me pelo corpo, o monte que se depara à minha frente a erguer-se com o sol. Ouço o mundo a acordar, primeiro baixinho com os ruídos dos bichos rasteiros, depois mais alto com o chilrear dos pássaros matinais. E, em todo este processo, sinto uma calma a encher-me, a consumir-me. Sinto-me a afogar-me nela, sinto-me a chegar a casa. O monte acolhe-me e, no desconforto e desafio dos pés descalços, caminho feliz.

O desconforto nem sempre é agradável, mas considero-o bem-vindo. O desconforto não facilita a tarefa com que nos ocupamos, seja ela qual for. Apesar disto, aproxima-nos de nós próprios, apresentando-nos os nossos limites, e do espaço. Se nos aproxima do espaço, poderá aproximar-nos da terra que é o nosso chão, aproximando-nos, então, da Natureza.

Existem vários argumentos que defendem um processo de degrowth económico como a solução mais eficaz para lidar com as difíceis alterações climáticas. Se extrairmos menos recursos, se produzirmos menos e consumirmos menos, se nos contentarmos com menos e alterarmos as nossas expectativas quanto ao que uma vida com boas condições implica, talvez assim, possamos criar as próximas gerações ainda neste planeta. Muitos criticam esta teoria, dizendo que não teria efeito, ou que não seria socialmente possível. É verdade que é um caminho difícil. Seria (ou será) um processo que envolve caminhos por entre montanhas e vales de desconforto. Depois de nos habituarmos a um certo nível de vida, voltar atrás parece algo absurdo. Mas, e se voltar atrás for a única forma de nos mantermos cá?

A pandemia deu-nos a provar em que é que este recuo resultaria. Em muitos aspetos, em especial a nível económico, não foi, e continua a não ser, fácil. A verdade é que, se o valor que pomos no dinheiro e na importância de o ter, enquanto sociedade, for reduzido, se a possibilidade de viver numa sociedade não girar somente em condições económicas, então talvez tenhamos uma hipótese. Durante a quarentena, muitas indústrias tiveram de parar a produção de bens, o comércio reduziu significativamente, o uso de transportes baixou de forma extraordinária, todos com efeitos avassaladores na economia. Por outro lado, os efeitos também foram impressionantes a nível ambiental com a diminuição gigante das taxas de poluição e a vida selvagem a retomar lugares onde há muito tinha desaparecido.

É assustador falar em degrowth. Significa, literalmente, decréscimo, sendo que a nível económico as consequências não seriam propriamente leves. Mas se abrirmos braços à caminhada do desconforto, talvez uma nova relação com a Natureza e os recursos que dela usamos, tenha possibilidade de germinar. Ir ao supermercado é algo muito prático. Compramos a couve para a sopa da família sem gastar muita energia a pensar de onde veio, que terra a nutriu, quem dela cuidou. Por que é que é prático? Provavelmente porque temos essa necessidade. De onde vem essa necessidade? Provavelmente porque não temos tempo para trabalhar numa horta. Porque não temos tempo? Provavelmente porque trabalhamos para ganhar dinheiro, para comprar a couve, para termos mais tempo que acabaremos por utilizar para trabalhar mais.

Nem todos vamos ter o terreno para fazer uma horta. A vida do campo, possivelmente, não serve para toda a gente. Se calhar, para acompanhar a lentidão livre da Natureza, basta um vaso ou um canteiro, para começar. Voltar às origens. Pôr as mãos na terra. Voltar às origens. Deixar uma semente e vê-la germinar, crescer, tornar-se numa planta (uma couve?). Voltar às origens. Enganarmo-nos e ver a força da Natureza perante os nossos erros. Ver a couve crescer apesar da seca, ou apesar da água a mais. Voltar às origens. Criar uma relação com a comida que cozinhamos, que comemos, que nos permite viver. Talvez não seja este o caminho. A aproximação da Natureza poderá ser através do uso do nosso corpo, largando tecnologias, permitindo explorar a força dos nossos braços, do engenho e da habilidade das nossas mãos e dedos. Talvez seja o caminho do desconforto que romperá com tudo aquilo que nos separa da Natureza.

Se calhar, temos de andar mais descalços, de subir mais montes.

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