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Mundo Novo

Uma defesa do realismo racionalista ante o pessimismo normalizado

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Diz-se, por aí, que o otimista seria apenas uma pessoa mal-informada. Reverbera-se muita coisa do senso comum, dos ditados populares e, claro, do frasismo militante – daqueles para quem o vasto e complexo mundo caberá em um punhado de frases de efeito, cativantes, por vezes desconcertantes e quase sempre descartáveis. Por outro lado, pergunto-me se o pessimista não será, por sua vez, um ingénuo dependente de catastrofismos conspiratórios para esquivar-se de compromissos perante a sua própria realidade.

Um escapismo: a conveniência dos conformados. Não sei. Estados de espírito podem explicar a desbragada deriva do otimismo e do pessimismo, e as vivências lançarão, talvez, as suas bases emocionais. Porque, se não me engano, ambos emergem de uma estrutura emotiva flutuante, desprovida de alicerces racionais. Todavia, não os desprezo de todo; não quando se apresentam dialeticamente, desafiantes. O problema reside quando otimismo ou pessimismo se assumem como finalidades em si, autojustificadas. Ou como se fossem uma corrente filosófica dignificante. Talvez até um paradigma.

Durante muito tempo considerei-me membro do clube dos pessimistas, assumindo a característica com que tanta gente me definia por eu ser “do contra”. Um dia, porém, o engano revelou-se-me: eu estava quase sempre deslocado socialmente, fora da minha bolha. Verdade seja dita: sempre fui um viajante interbolhas, sem nunca conseguir permanecer por muito tempo dentro de uma única. É bom estar fora das (tão aliciantes) microrrealidades condicionantes, mas não para ser engolido ou acossado por otimistas que não são senão pessimistas normalizados. E um pessimista normalizado é aquele que já nem se importa mais com nada – ou nunca logrou importarse – e por isso mesmo vive no refúgio de uma indiferença confundida com otimismo.

Pessimista, para mim, é quem nem se dá ao trabalho de tentar compreender o mundo. “Não vale a pena”, diz. Porque nunca nada vai mudar, e importar-se é perda de tempo. Mas o pessimista o é em relação ao outro, à “estupidez humana”, que decerto não será a sua. Ele está cansado de acreditar na humanidade, mas acredita em si, e lamenta que o mundo não reproduza a sua dignidade própria. Então a solução é normalizar o pessimismo na indiferença do otimismo autocentrado.

Ele pode ser o sujeito que sorri para todos, o que passa a vida agradecendo a Deus por cada respiração (por mais que respire ar poluído), o que posa em cartões postais legendados com frases inspiradoras em inglês ou, claro, o místico da revolução interior que aplaude o arrebol. Clichês, decerto, mas de um comportamento reproduzido que na prática não passa de escapismo conformista. Às vezes, no entanto, ele pode acumular atributos e incluir o fascínio por teorias conspiratórias, a crença na capacidade racional da natureza (que com a pandemia estaria “reagindo” à humanidade – uma crença, diga-se, com tenebrosas implicações elitistas, higienistas e até eugenistas), ou aquele ódio básico contra os ciganos. Ou contra quem cismou com inocentes estátuas que na placidez da sua petrificada pose não perturbam ninguém, gente que só quer causar confusão e pôr uns contra outros remexendo feridas que para o otimista já estarão muito bem cicatrizadas, porque, julga, não são as suas. Provavelmente nem sabe quais são.

É comum chamar pessimista a gente de esquerda para quem não há atenuante possível face ao que quer que seja, para quem o realismo e o possível não são senão um manhoso capricho reacionário. Eu também quero o impossível, o utópico, mas sobretudo para seguir orientado na caminhada, não para finalizá-la por um atalho árido e traiçoeiro. A muita dessa gente eu chamaria não pessimista, mas uma curiosa espécie política antipolítica.

Como desde muito cedo fui influenciado pelas ideias anarquistas, que me adentraram na política, nas ciências sociais e no ativismo, essa espécie faz-me lembrar daquilo a que o comunalista Murray Bookchin, fundador da Ecologia Social e do Municipalismo Libertário, pejorativamente chamou “anarquistas de estilo de vida”. Não será errado dizer que uma parte de mim pertence a essa espécie, embora ela viva em constante conflito com a parte propositiva que a antagoniza afincadamente.

Para Bookchin, há um “abismo intransponível” entre o anarquismo social, comprometido com a luta transformadora e organizado teoricamente, e esse anarquismo que ele vê como um mero aventureirismo individualista, uma ostentação pessoal e, especialmente, uma aversão à teoria “estranhamente similar às tendências antirracionais do pós-modernismo”.

E não se furta de apontar exemplos. Destaco o que é dito sobre Hakim Bey, o anarquista ontológico fã das utopias piratas e criador da Zona Autónoma Temporária (TAZ), que influenciaria movimentos de ocupação sobretudo na Europa. O mais simpático que Bookchin reserva à TAZ é chamá-la de um dos mais enfadonhos exemplos de anarquismo de estilo de vida. Concordo com a crítica e ao mesmo tempo sinto certo fascínio pela componente lúdica da TAZ, já tendo participado de muitas e ajudado a criar outras tantas. Elas são catárticas e transgressoras, mas obviamente insuficientes e superficiais. Permito-me, assim, aconselhar vivamente a leitura de ambos os autores para se compreender a distinta dimensão propositiva que risca uma linha muito exata entre duas tendências antagónicas do anarquismo atual e, creio eu, das maneiras de se estar no mundo enquanto sujeito politicamente interessado.

E por que discorro acerca disso? Ora, porque são exemplos muito evidentes do antagonismo entre o realismo racionalista e o pessimismo normalizado. Bookchin quer transformar a sociedade a partir de um projeto político racional envolvendo efetiva participação popular – ainda que se tenha tornado um grande crítico do marxismo, a sua obra é fundamentalmente materialista –; Bey, que assume-se antirrevolucionário sem qualquer rodeio, preferindo uma ideia claramente romantizada de “levante”, é o otimista autocentrado e, portanto, reprodutor do pessimismo normalizado.

Para ele, não importa a realidade material do mundo, porque pode existir um refúgio virtual em que a vida se festejará por breves momentos até ser reprimida e ressurgir noutro refúgio. E esse refúgio não precisa ser nem um naco de realidade: pode reproduzir-se apenas na Internet mesmo. É, portanto, uma indiferença face a propostas de transformação estrutural. As ideias de Bey aproximam-se muito da provocação e da sabotagem, e por isso mesmo faz sucesso em algumas subculturas urbanas, como os punks e os okupas, e dialoga com o anarcoprimitivismo. E aqui se faz a ligação com as perspetivas pós-pandemia.

Certa feita, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, numa interessante conferência sobre a água, uma senhora, professora, não me lembro de que área, com os olhos quase marejados alegou ficar destroçada todas as vezes em que via alguém deixar a torneira ligada enquanto escovava os dentes. A sua voz vacilava, enrouquecida em virtude da emoção com que denunciava tamanho absurdo, tamanho gesto irresponsável e insustentável. Depois disso, ao fim da conferência, quase todo o quórum da sessão, com ela incluída, dirigiu-se placidamente à cantina e almoçou o menu carne. A sua identidade, que eu desconheço, não tem a menor importância, porque estigmatizá-la seria, para mim, cair em profunda contradição face à minha própria crítica. Na altura, enquanto jovem graduando, eu andava imerso em leituras sobre ecologia social – foi mais ou menos quando vasculhei mais a fundo a obra de Bookchin – e ao mesmo tempo me deparava, nas aulas do curso de Geografia, com o que considero ser um certo esvaziamento teórico pautado pelo termo “desenvolvimento sustentável”, que de tão esticado perdeu a sua substância.

Eu iria até mais longe, concordando com o ecossocialismo: não existe desenvolvimento sustentável! Não dentro das atuais estruturas, que estão organizadas para uma tríade insustentável sem a qual o capitalismo não pode existir: extrativismo, produtivismo e consumismo. Qualquer arroubo visionário sobre o futuro do mundo, que curiosamente ocorrerá com ele regressado a uma antiga normalidade – para perceberem o irracionalismo e a despolitização que emanam de quem, enquadrado pela ideologia dominante, forma a opinião pública –, não será senão uma farsa caso não se assente numa transformação estrutural.

A antiga normalidade, insustentável – e eu diria insuportável –, não oferece qualquer possibilidade de transformação positiva do mundo. Podemos preparar-nos é claro, para algumas transformações, tais como mais precarização do trabalho, mais musculatura policial e controle social, um ainda maior abismo entre ricos filantropos sorridentes (e motivos para sorrir não lhes falta: a pandemia deixou-lhes ainda mais ricos) e pobres silenciados e dilacerados pela ideologia totalitária do trabalho, que decerto só serão positivas para quem já beneficiava das estruturas vigentes a partir das posições de privilégio.

A intervenção daquela senhora não me saiu mais da cabeça por reproduzir a individualização da culpa, tornando invisíveis as estruturas. E o que é invisível está protegido: durante toda a conferência, que deu espaço a diversos intervenientes, não se tocou uma única vez, nem indiretamente, no agronegócio, de longe – e muito longe – a atividade que mais consome e sobretudo desperdiça água no mundo.

Mas então, afinal, onde me situo? O copo está meio cheio ou meio vazio? Ainda que eu empreenda todos os esforços para me agarrar ao realismo racionalista, o isolamento provocado pela pandemia – que no meu caso engendrou uma desnorteante combinação de implacável hipocondria, latejante ansiedade, exagerado fluxo de pavorosa (mas rigorosa) informação científica e tarefas académicas automatizadas e já sem sentido, cumpridas quase que apenas para “honrar” as propinas que, tendo perdido as fontes de rendimento, tenho de pagar sabe-se lá como – impregnou-me de pessimismo espiritual, e é embebido nele que chegarei ao que convenciona-se chamar “regresso (gradual) à normalidade”.

Enfatizo-o, porque é o cerne da questão: se voltamos à normalidade, que espaço poderá haver para as patéticas utopias desenhadas especialmente durante as primeiras semanas da quarentena? Rios despoluídos, a vida selvagem exibindo-se alegremente; a esperança renascida na solidariedade, na consciência global, no espírito de entreajuda; os simpáticos bilionários caridosos, dispostos a dar esmolas; o arco-íris nas janelas, informando o pessimismo normalizado na indiferença do otimismo autocentrado: “vai ficar tudo bem”. Tendo-me contaminado de pessimismo espiritual pelo pessimismo normalizado, confesso que apenas 25% dessa frase de quatro palavras estará incorreto. Trocando-se o “bem” por “igual” corrige-se a mensagem. Mas ficar tudo igual é, insisto, o melhor dos cenários. É bem provável que tudo fiquei ainda pior.

Assim que puder, ou talvez antes, o turismo, que já representava quase 15% do PIB nacional, regressará para os nobres proprietários, ungidos de espírito patriótico, continuarem a expulsar populações locais para longe da cidade reluzente e revitalizada, onde só entra quem comprovar muito bem comprovado o direito comprado ao acesso. Aquela utopia vislumbrada nos primeiros dias da quarentena esvaziou-se tão rapidamente porque não tinha mesmo quase nada de que se esvaziar: era tão vazia quanto o desenvolvimento sustentável que enche a boca das elites que preferem a extinção humana à repartição da riqueza. E sobre repartição, deixe-me dizer: não estamos e nem nunca estivemos todos no mesmo barco como apregoam, de ingénuos a mequetrefes, os românticos, desejosos por regressar-se a um passado pré-pandémico que deveria ser superado e não resgatado. E não, não se supera o que se resgata: acomoda-se nele. Neste poluído mar raivosamente ondulado pelo sopro do egoísmo, só alguns têm barco.

Ainda menos são os que têm navios, dentro dos quais nem a neura das águas sentem. A maioria, com a água pelo pescoço, luta para não se afogar, muitas vezes compelida a apoiar-se em quem está ao lado na mesma situação. Mas há também quem nem água tenha: nem para se afogar, nem mesmo para lavar os dentes sem desperdício. Enquanto nos navios a agroindústria até divide o mar ao meio e inicia entre águas uma nova monocultura de soja caso queira, como faz na Amazónia, para a senhorinha indignada com a torneira aberta satisfazer acriticamente o seu apetite necro-luxuoso.

A esperança de uma transformação positiva do mundo por causa da pandemia não só não se funda em análise racional como não possui qualquer precedente. Pelo contrário: foi sob o pretexto do combate a pestes que alguns dos mais cruéis e duradouros processos de higienização social foram desenvolvidos e/ou acelerados. Como o que sob rasgadíssimos elogios da imprensa “limpou” o Rio de Janeiro das “classes perigosas” empurrando-as para o que viria a ser as favelas, explicado pelo historiador Sidney Chalhoub no livro Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial.

Obviamente, não será com esta pandemia que iremos recalcular o nosso lugar neste mundo ou a dimensão da nossa real importância no drama cósmico, e muito menos a ganância material e a dominação dela derivada. O que vai ficar bem são as estruturas que nos impedem de ficar bem. Elas sim ficarão beníssimas e serão decerto reforçadas, afinal, nelas, a desgraça de muitos seguirá sendo o leitmotiv da plutocracia rastaquera, também proprietária de quem nos vende notícias, narrativas e especialmente “narratícias” hegemónicas otimistas, que não maculam as estruturas nem em notas de rodapé, nem na seleção dos seus iluminados opinion makers habilitados a falar sobre absolutamente tudo.

Chorudas inovações avizinham-se para lubrificar a velha engrenagem. Mas não, o meu pessimismo espiritual não é um escapismo conformista. É, antes, o realismo que me faz compreender a necessidade da politização que engendre uma organização social consciente de que a transformação está na superação das estruturas e não nos paliativos emocionais, esvaziados de substância. Nada mudará, mas apenas até ser efetivamente mudado. O realismo racionalista carrega consigo uma certeza: a de que a ordem material é uma construção social e não um capricho da natureza.

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