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Mundo Novo

Uma Caixa de Pandora

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Sou um pouco cético relativamente à expressão “novo normal”. Pelo menos, no que diz respeito à dinâmica social e aos comportamentos das pessoas. O mundo pode mudar economicamente, poderá mudar a nível dos mercados, tenderá a mudar, de igual modo, no âmbito laboral… Já os comportamentos sociais demoram décadas a serem alterados, desenvolvem-se gradualmente e de forma natural.

A Dona Carminda, que mora na pequena casa da frente aqui da rua, continua a regar o passeio sem motivo aparente todos os dias à mesma hora, cumprimentando todos os que passam, como de costume. Desconfio que, também, goste de pôr a conversa em dia com quem se senta na paragem ante de sua velha moradia e aguarda, pacientemente, a chegada do autocarro. O Sr. Figueiredo nunca deixou de sair à rua de manhã, acompanhado pelo seu labrador de tom chocolate; um amigo fiel, tal como a menina da casa dos Lopes nunca deixou de se encontrar com aquele simpático rapaz, com quem corria para trás de um módico pomar de pereiras. Tem-se que o amor nos reserva destas agradáveis surpresas.

Ouve-se o badalar impetuoso da sineta eletrónica da escola primária que assenta no cimo da rua, seguido dos vozeios felizes que ecoam a satisfação ou contentamento dos pequenos que estão, naquele momento, a rever os seus futuros amigos de infância. O mundo normal é, precisamente, este, aquele que não usa máscaras e tão-pouco nos tranca perpetuamente num espaço de algumas assoalhadas. Sente-se a saudade dos espaços abertos e da brisa fresca típica dos campos verdejantes que nos afoga o corpo ou da maresia purificante a meia-luz, cuja compilação funda a praia selvagem que me recorda do Alentejo ou da zona norte de Portugal.  É assim a essência humana: a comunicação e a interação com os outros e com o ambiente são a génese da sociedade, é através delas que se criam os princípios que, por sua vez, estimulam o florescimento da razão e renunciar à nossa própria natureza torna-nos seres adoecidos e pobres.

Assim, se há coisa que me tem inquietado, é o facto de esta doutrina do “novo normal” divergir por completo daquilo que é natural, ou seja, de entender o homem e a mulher como seres antissociais, desprovidos de emoções, sentimentos e necessidades e de contrariar algo que nos é intrínseco desde o reconhecimento do mundo enquanto tal, exteriorizado nas teses aristotélicas: o relacionamento. Ainda que o estado de crise pandémica produza efeitos e alterações inevitáveis no que concerne às políticas de saúde e de segurança, que permita a exploração de novas soluções e sirva de fundamento para o desenvolvimento, a verdade é que do ponto de vista social as coisas se dão de maneira um pouco diferente. Daí que, na minha opinião, o medo resultante da situação de pandemia e a volubilidade do dia a dia das pessoas, nos dias de hoje, consubstanciem o momento ideal para um aproveitamento ou tentativas de consagração de certos interesses que representam um elevado índice de perigosidade. 

Desacredito o “novo normal” em que se encaixam a escola virtual e o teletrabalho a full-time, em detrimento do regime presencial, porque estes deveriam ser a exceção à regra. Afasto a mísera probabilidade de ver alguém preso, num cubículo-cárcere digital, à mercê da cibercriminalidade, e a condenar a sua liberdade ao patíbulo que deveria permanecer abolido. Refuto qualquer tipo de ciber-controlo à privacidade, que nos encaminhe à implantação de um regime totalitário, enquanto assisto ao silêncio das regulamentações necessárias a estas matérias. Vivemos um período específico de uma época perturbada que tenciona retornar à verdadeira normalidade. O “novo normal”, assim como está, é uma caixa de Pandora.

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