Mundo Novo

A Arte Pós-COVID

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“Como ser artista e não refletir a época?”. Da boca de Nina Simone saía a pergunta que não exigia resposta. É esse o dever do artista. Eventualmente, a arte como resposta a estímulos exteriores, a documentação da realidade pelos olhos de um indivíduo, poderá vir a alterar o modo como muitos outros encaram o mundo, tornando-se a própria arte um agente de mudança.

Mas são os grandes eventos que marcam as barreiras históricas delimitadoras das linhas de pensamento. O surgimento do Renascimento, por exemplo, é indissociável dos efeitos causados pela Peste Negra na Europa. O estudo da Grécia Antiga expande-se, tendo beneficiado bastante da posterior queda do Império Bizantino, que provocou a migração de diversos intelectuais para diversos pontos do velho continente, nomeadamente, Itália. Como seria possível, após toda a destruição, após todas as mortes, não mudar drasticamente o modo como se encarava a nossa posição no Universo? O choque é essencial para a rutura com a norma.

No presente século, apenas o 11 de Setembro terá tido um impacto comparável no modo de vida da civilização ocidental. A era do medo surgiu. As guerras reacenderam-se, agora para serem travadas numa área que foi despersonalizada com o nome de Médio Oriente. Os filmes tornaram-se mais escuros. As sitcoms foram desparecendo. A bolha de ilusão de felicidade em que vivíamos rebentou e com ela encontramo-nos, novamente, com todos os nossos defeitos.

O aquecimento global. As crises migratórias. A ilha de lixo no Pacífico. A seca no Iémen. As pandemias. Os únicos paraísos que existem são fiscais. O existencialismo tem conquistado terreno, principalmente entre as gerações mais jovens, que parecem ser incapazes de aceitar o ridículo que vem associado a todos os sistemas que nos permitem manter a ideia de normalidade civilizacional. Qual é a relevância da nossa equipa ter perdido o campeonato com tudo isto a acontecer? E, mesmo reconhecendo a existência de problemas maiores, qual a razão para as insignificâncias do quotidiano nos continuarem a incomodar?

A COVID-19 traz consigo um efeito mais devastador a longo prazo na memória coletiva do que a doença em si. O espectro de uma nova recessão económica, semelhante à que eclodiu em 2008, mas a uma escala imediata, global e sem precedentes. As desigualdades acentuam-se. Enquanto Bezos acumula o equivalente ao PIB de uma pequena nação, milhões mergulham no desemprego. As pequenas e médias empresas enfrentam o risco de extinção em massa. Entretanto, a violência racial volta à ordem do dia. Anos após a entrevista de Nina Simone, pouco parece ter sido feito a esse respeito.

E como fica a cultura neste contexto? Esquecida. Num período em que tudo parece prestes a entrar em ebulição, como poderemos parar para pensar nos artistas? Mas é importante não os esquecermos, porque será sempre neles que apoiaremos a mudança. A mudança social surge sempre de mãos dadas com a revolução artística. Que maneira melhor haverá para divulgar os nossos desejos? Para que conheçam os nossos objetivos. Os nossos ideais. 

Enquanto os ventos são de mudança, reflitam também sobre o estado atual dos profissionais da cultura. Os que não enchem Coliseus, mas que tratam deles. Ou os que ainda não conheceram a fama e os aplausos de milhares. Será pela mão de alguns deles que partirão as correntes artísticas que marcarão as épocas vindouras.

Não é precoce assumir que este será um ponto de viragem no contexto artístico e cultural. Quanto às suas manifestações concretas, podemos apenas especular. Uma mensagem de esperança ou o reconhecimento que estamos condenados? Um regresso à escuridão e ao medo ou a abertura com a queda de velhos muros? Sabemos apenas que passará, certamente, pela rejeição dos modelos artísticos atuais. A mudança será reflexo da análise crítica, não apenas do presente, mas no passado que lhe serviu de alicerce.

Com a destruição de estátuas e monumentos associados ao colonialismo (e não só), convém relembrar que estas obras nem sempre são História. São estórias. Narrativas que revelam mais sobre o modo como perspetivávamos os nossos feitos e conquistas à época do que da própria natureza desses feitos. Rejeitar o seu objetivo original é válido e uma consequência da ação erosiva do tempo. Mas a destruição e ocultação de património, mesmo aquele que nos deve envergonhar, será sempre um assunto delicado. Devemos, pelo menos, guardar a sua memória.

A razão é simples. Sem memória, como poderíamos justificar a necessidade de mudança?

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