Mundo Novo
Reaprender a respirar a cidade: como reinventar a ocupação do espaço público?
O contexto gerado pela pandemia tem alimentado um tempo de desafios imensos, nomeadamente (e sobretudo) de dimensão social. As restrições de circulação e a necessidade de isolamento das populações têm quebrado a rotina das relações sociais presenciais e da proximidade física, produzindo um enfraquecimento e uma suspensão dessas interações. Apesar de se terem intensificado as experiências de socialização por via de recursos digitais como forma de colmatar o vazio produzido pelo confinamento, o desejo de liberdade e de contacto físico é inevitável e inerente ao ser humano. Neste panorama, o espaço público urbano, enquanto espaço comum de ação e interação, de prática da existência humana e manifestação de liberdade, foi desocupado pelas populações em clausura. O medo e a insegurança, agora enquadrados no cenário de pandemia, continuam, em muitos casos, a ameaçar a possibilidade de usufruirmos mais da nossa cidade, do nosso bairro.
Sendo o espaço público um lugar importante de encontro, socialização, expressão, debate e aprendizagens, torna-se fundamental pensá-lo enquanto palco principal para as múltiplas experiências e vivências sociais. Desta forma, a subocupação dos espaços públicos das nossas cidades e dos nossos bairros poderá antever um retrato de vulnerabilidade das relações e dinâmicas sociais contemporâneas. Mas este quadro não é novo nem menos dramático do que os riscos da pandemia. Se no contexto pré-Covid já assistíamos a um afastamento das populações dos lugares comuns das suas comunidades, estes novos tempos de pandemia vieram, eventualmente, agravar esse cenário.
Obviamente que é crucial sermos responsáveis e prudentes face aos riscos que acarretam a atual pandemia, e que a adoção sistemática de um conjunto de comportamentos preventivos de higiene e segurança são essenciais para travar a disseminação do vírus. Contudo, não podemos esquecer que sair à rua é também importante para mantermos a nossa saúde física e mental, sobretudo porque isso nos permite movimentar, intervir, sentir a nossa comunidade e encontrarmo-nos com pessoas.
Com a exceção das zonas de serviços, áreas turísticas e de lazer, que em dias e horários específicos sacodem espaços delimitados da cidade, ao caminhar pelas nossas cidades encontramos diversos lugares deserdados. Em alguns destes espaços estão representados sinais de pobreza urbana e manifestações de desigualdades sociais, que têm aumentado face à atual situação de crise causada pela Covid-19. Porém, os sentimentos de medo e desconfiança que poderão emergir devido a esta realidade e ao potencial contágio pelo vírus, têm, em alguns casos, dado lugar a um reforço do contacto comunitário.
Se, por um lado, a existência de espaços desestruturados e inseguros na cidade poderá incentivar o distanciamento das pessoas e conduzi-las a espaços privados e fechados, como as suas casas ou os centros comerciais, por outro, a situação atual de pandemia veio revelar a necessidade da proximidade física e do contacto com o ar livre. Num paradoxo desconcertante, a fobia do contacto físico tem acompanhado, simultaneamente, a vontade desesperada por esse contacto e proximidade. Como se tratasse de uma espécie de pandemia paralela, o duelo entre o medo da realidade, a exaustão física e psicológica e os desejos de liberdade torna-se numa bizarra tempestade sobre como poderemos ser, estar e agir.
Considerando que vivemos um tempo de ansiedade e incertezas, mas também de reflexão sobre o mundo que vivemos e o mundo que queremos, é urgente reforçar e fortalecer as nossas conexões reais. São as relações de proximidade e os vínculos sociais que dão sentido à vida em comunidade e que poderão nutrir o sentimento de pertença e segurança. É no contexto de comunidade que poderão construir-se relações, emergir afetos, demonstrações de solidariedade e cooperação, sendo que crianças e jovens têm um papel relevante na construção destes vínculos e de processos colaborativos.
É flagrante a relação distante entre as crianças e os espaços públicos das cidades. Observar crianças na rua a brincar é praticamente uma miragem, sendo que os espaços ao ar livre têm vindo há alguns anos a ser substituídos por espaços fechados, onde as crianças encontram alternativas digitais, que as afasta do contacto com a rua e a natureza. A falta de contacto com a rua e os diversos espaços da cidade poderá comprometer a agilidade motora das pessoas mais jovens, a sua autonomia e facilidade em ultrapassar situações de potencial risco, a sua capacidade de se expressar, relacionar e de explorar o mundo. O confronto com esta realidade, reafirma a urgência da construção de espaços abertos, que possibilitem que crianças e adultos se encontrem em segurança e liberdade.
O envolvimento da população no planeamento das cidades, integrando nos planos urbanos as várias visões e conceções das pessoas, inclusive das mais jovens, poderá permitir decisões mais inclusivas e sustentáveis. Perspetivas mais amplas e diversificadas poderão atribuir novos significados aos espaços e reinventá-los. Alimentar as redes tradicionais de vizinhança e entreajuda, caminhar, jogar, brincar, (re)descobrir os espaços, experienciar e (re)aprender a respirar a cidade poderá fortalecer a imunidade e as vivências humanas.
Resgatar as relações de proximidade e as ligações com as ruas dos nossos bairros – passeios, largos, praças, parques, jardins – na perspetiva da construção de uma cidade mais humanizada e participada, é existirmos e cuidarmos uns dos outros. Quando estabelecemos relações próximas de cooperação e construímos espaços coletivos de encontro e interação, estamos a ser protagonistas da nossa realidade e a contribuir para uma sociedade e vida mais saudáveis.
Em tempo de desafios e transições, mobilizar estratégias responsáveis com base em modelos mais solidários, democráticos e colaborativos é essencial para a construção de uma cidade mais livre, dinâmica, ecológica e socialmente justa. Conseguiremos juntos ultrapassar as adversidades desde que nos importemos uns com uns outros, que sintamos empatia e vivamos mais para fora do que para dentro. É, sobretudo, no exterior, nas ruas dos nossos bairros e das nossas cidades, que poderemos aprender o mundo e manifestar a nossa humanidade, o nosso civismo, (re)criando e sonhando um mundo melhor.