Ciência e Saúde
Ensino, investigação e comunicação em ciência: os primeiros passos num novo mundo virtual
Quando a 8 de março começaram a ser encerradas várias instituições de ensino superior no Porto, e no país, devido à pandemia de COVID-19, a atenção esteve maioritariamente focada nas implicações que esse encerramento físico teria no ensino superior. No entanto, o período de confinamento demonstrou ter inúmeras implicações também na investigação que é realizada pelas universidades e centros de investigação e nas suas práticas de comunicação científica. Muitos investigadores viram o seu acesso negado aos laboratórios, com graves implicações para o cumprimento dos projetos nos prazos para os quais têm financiamento. Adicionalmente, grande parte dos eventos científicos que estavam previstos até meados de 2020 foram adiados ou mesmo cancelados, com alguns a serem realizados totalmente online.
Para perceber como é que a comunidade académica lidou com estes novos desafios e como será no futuro, o JUP conversou com Rui Ribeiro, investigador doutorado da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), e Cândida Manuel, professora universitária na Universidade Lusófona do Porto.
Ensino virtual
O período de confinamento e a suspensão das aulas presenciais criaram uma necessidade de adaptação tanto por parte dos docentes como dos estudantes a uma nova realidade de dar e ter aulas a partir de casa. Uma das vertentes em que foi necessário investir passou por aprender novas aptidões tecnológicas de comunicação à distância, que se recorreram de plataformas já existentes como o Zoom, Microsoft Teams, Google Meet, Skype e até mesmo o YouTube. Cândida Manuel, professora universitária e diretora do curso de Engenharia do Ambiente na Universidade Lusófona do Porto, considera que, apesar de este confinamento ter sido terrível para a sociedade, “trouxe algumas vantagens porque as pessoas aprenderam que também é possível trabalhar desta forma e é possível comunicar”.
Com o ensino universitário português ainda fortemente baseado em palestras, um dos objetivos passou por conseguir captar eficazmente a atenção dos estudantes durante as palestras virtuais. “Eu senti que para os alunos que já são muito focados, ter as aulas assim não fez diferença nenhuma para eles. Aliás até gostaram. Porquê? Porque acabam por ver o professor cara a cara, como se estivesse só com eles, e colocam dúvidas quando é preciso e estudam. Para os alunos focados estas aulas à distância funcionaram bem. Também tive alunos que indicaram que preferiam as aulas presenciais pois estavam mais atentos e concentrados. Mas foi muito grande o esforço para adaptar as aulas ao ensino à distância e para os cativar e envolver no estudo das disciplinas”, partilha a professora.
Apesar do desafio acrescido de ganhar a atenção dos estudantes que mais facilmente se distraem, esta forma de ensino à distância teve as suas contrapartidas. “Em turmas grandes – tenho uma disciplina com mais de cem alunos – o que verifiquei foi que não houve nenhum abandono e as aulas até corriam melhor aqui do meu lado. Porquê? Porque os alunos que normalmente estavam a falar com o colega e faziam algum ruído que era preciso controlar nas aulas teóricas, [nas aulas em videoconferência] não perturbavam”. Uma vantagem que foi sentida também por alguns estudantes que, como partilhou Cândida Manuel, lhe chegaram a dizer que assim era muito mais fácil porque estavam a apenas “30 cm” da professora e facilmente viam e ouviam tudo.
Se as aulas que já eram previstas no formato de palestras trouxeram alguns desafios no formato online, as aulas que se previam práticas, sobretudo aquelas que decorriam em laboratórios ou oficinas, implicaram um esforço adicional por parte dos docentes. Para a professora a melhor resposta passou por arranjar novas formas de trabalhar: laboratórios virtuais, simuladores e vídeos no YouTube. “Por exemplo, para Química Analítica, encontramos simuladores com muita qualidade. Efetivamente, não é a mesma coisa que pegar num erlenmeyer ou montar uma bureta, mas o que sentimos no final é que os alunos gostaram e aprenderam”.
Para complementar esta formação, Cândida Manuel prevê levar, neste próximo ano letivo, os estudantes ao laboratório para fazer algumas experiências presencialmente uma vez que não foram lá realizadas devido à pandemia. Apesar disto, refere que houve unidades curriculares que até ganharam, dando o exemplo de Física, em que a equipa de docentes encontrou inúmeros simuladores e laboratórios virtuais que permitiram mostrar alguns equipamentos que não têm na faculdade. “Acredito que no futuro, algumas dessas novas tecnologias vão continuar a ser utilizadas. Para mim é um ponto muito positivo”, destaca.
É possível fazer investigação a partir de casa?
A investigação científica em Portugal não parou com a pandemia de COVID-19, facto amplamente demonstrado com a diversidade de tecnologias e desenvolvimentos que surgiram na área da saúde (mas vindos das mais diversas áreas de investigação) para ajudar os profissionais de saúde a combater o vírus SARS-CoV-2. Mas e as restantes áreas científicas?
Enquanto algumas áreas conseguiram continuar a produzir por realizarem trabalhos mais computacionais de simulação e tratamento de dados ou por disporem de alguns equipamentos de aquisição de dados autónomos, muitas batas ficaram penduradas e a ganhar pó entre meados de março e finais de maio. Com vários centros e laboratórios de investigação encerrados, houve inúmeros projetos de investigação e estudantes de doutoramento afetados, o que implicou atrasos de vários meses para os trabalhos que estavam em curso e, em alguns casos, o risco de não conseguir acabar os trabalhos dentro do prazo para o qual existe financiamento.
Rui Ribeiro, investigador doutorado contratado no grupo de catálise e materiais de carbono do laboratório associado LSRE-LCM (Laboratório de Processos de Separação e Reação – Laboratório de Catálise e Materiais) da FEUP, partilha que “já estava bastante familiarizado com a realização de trabalho de investigação a partir de casa”, mas que foi necessário estabelecer novas linhas de comunicação com os restantes membros da equipa. Este último ponto foi, segundo o investigador, a principal dificuldade que sentiu pois, por muitas alternativas que haja, “nada replica o contacto direto”. “Como principais vantagens, identifico a ausência de deslocação entre casa e trabalho, bem como a maior capacidade de me concentrar em tarefas concretas quando estou em casa sem estímulos de terceiros”, expõe.
Apesar de as instalações laboratoriais em que Rui Ribeiro trabalha terem estado inacessíveis entre 14 de março e 17 de maio, o investigador explicou ao JUP como conseguiu continuar a trabalhar: “O confinamento obrigatório surgiu durante um período em que estava a preparar várias candidaturas para diferentes concursos nacionais e internacionais, pelo que a impossibilidade de aceder aos laboratórios não me trouxe qualquer constrangimento. Uma vez submetidas as candidaturas, surgiu a necessidade de finalizar a escrita de alguns artigos científicos.”
Também Cândida Manuel, que conjuga o trabalho de docência com o de investigadora no centro de investigação DREAMS, seguiu um plano semelhante ao de Rui Ribeiro pois “não era possível ir para o laboratório” e, nos trabalhos de investigação em curso com empresas parceiras, também não se podia ir às empresas para fazer análises. “Mas, tivemos durante este período de confinamento uma candidatura a um projeto FCT […] e isso continuamos a fazer [normalmente].”
Esta foi uma estratégia usada por muitos investigadores, que tentaram rentabilizar o tempo de confinamento em casa para escrever projetos e relatórios e publicar artigos científicos com base nos dados que já tinham, na impossibilidade em muitos casos de obterem novos resultados experimentais. Algo que também foi possível por estarem abertos vários concursos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), entre outros, mas que não seria viável durante um período muito mais alargado de tempo.
Comunicação científica em que “as distâncias desapareceram”
O trabalho de um investigador pouca utilidade tem se não for partilhado com a comunidade científica, mas também com o público não especializado e tecido empresarial. Se a publicação de textos científicos é algo muito específico e terá apenas leitura de um grupo restrito de pessoas, as palestras, congressos, seminários e toda a panóplia de eventos científicos baseados na comunicação oral são o seu complemento.
Mesmo antes de as aulas presencias serem suspensas, muitos eventos científicos foram cancelados ou adiados, algo que se amplificou com o início do confinamento. No entanto, à semelhança do ensino e da investigação, e até superando largamente estes dois, a comunicação científica renovou-se durante o confinamento, crescendo e inovando, em que a qualidade da ligação à internet passou a ser o novo limite.
Relativamente aos eventos científicos para público especializado, o novo formato online veio cortar muitos dos custos que a organização e participação destes eventos geralmente acarreta e trouxe vários benefícios em questões de sustentabilidade, uma vez que é possível reunir investigadores de todo o mundo num só lugar sem necessidade de estes deixarem as respetivas unidades de investigação. Rui Ribeiro participou pela primeira vez num evento científico realizado em formato online por causa da pandemia. “Considero que o saldo final foi positivo, já que tive a possibilidade de apresentar alguns resultados da minha investigação, bem como conhecer resultados obtidos por outros grupos.”
O investigador identificou algumas vantagens e desvantagens deste formato, confidenciando que prefere eventos presenciais aos virtuais. “No evento em que participei acabou por se estabelecer uma compartimentação demasiado vincada dos participantes, sem que fosse estimulada a troca de ideias, experiências e contactos – o que considero ser os principais objetivos de um congresso científico.” Segundo o investigador, as grandes desvantagens passam pela ausência de contacto pessoal e de networking, sendo que a principal vantagem é a possibilidade de realizar este tipo de eventos mesmo num contexto de pandemia global com restrições enormes à circulação de pessoas. “Considero que as conferências virtuais terão um tempo de vida bastante curto, dado que não conseguem atingir os objetivos, nem oferecer as oportunidades de networking das conferências presenciais”, partilha.
Cândida Manuel, que estava na organização de uma conferência no âmbito de um projeto sobre práticas pedagógicas e metodologias de ensino prevista para início de abril de 2020, revelou que a sua primeira reação foi de cancelar o evento. “Mas depois disse ‘não vou cancelar’, já que estamos a dar aulas pelo Teams, vou fazê-la pelo Teams e logo se vê. E a verdade é que correu muito bem. Correu tão bem e houve uma adesão tão boa que, em vez de uma, fiz mais duas. Ou seja, no espaço de um mês e meio, fiz três conferências sobre as práticas pedagógicas. Eram temas sobre os quais os professores precisavam de aprender mais e abrimos inclusivamente, não só aos professores da própria universidade, como ao exterior. A última conferência tinha quase 300 inscritos, tendo estado mais de 200 presentes.”
Apesar de também reconhecer desvantagens neste formato, a professora partilhou que gostou da experiência da organização de conferências científicas online. “Há vantagens e desvantagens nas conferências online. É mais fácil trazer participantes para os eventos online pois podem assistir pelo computador ou telemóvel, a partir de casa ou de outro qualquer local. As distâncias deixam assim de ser importantes. Por exemplo, tive vários participantes de universidades do Brasil. Por outro lado, estes eventos online não facilitam o contacto pessoal entre os participantes e os oradores.” No entanto, segundo a professora, também se pode criar outro tipo de networking; “Eu pelo menos ganhei imensos contactos e tive convites para participar em projetos. Sei também de outros casos em que entre oradores e participantes se criaram ligações.”
Relativamente a reuniões de projetos, a opinião dos dois entrevistados também divergiu. Segundo Rui Ribeiro, na maioria dos casos não será benéfico um formato online. “O contacto pessoal e a possibilidade de realizar várias reuniões em paralelo – por exemplo para discutir trabalhos/projetos conjuntos para o futuro entre elementos de diferentes grupos de investigação – apenas são estimulados em eventos presenciais. Em eventos exclusivamente online, acaba por haver uma espécie de ‘guião’ a seguir, sem grande espaço para espontaneidade, ou surgimento de novas ideias/projetos”, explica.
Cândida Manuel considera que “a vantagem de serem online é que facilmente conseguimos encontrar um momento em que todos estão disponíveis para reunir, especialmente se não forem da mesma área geográfica”. No entanto, considera que, tal como para as aulas, é importante que existam também momentos presenciais.
Do “laboratório” para o mundo
Depois de um período de adaptação em que a maioria das palestras abertas ao público não especializado foi cancelada, deu-se um “boom” de eventos organizados em formato virtual, tanto organizados por instituições privadas como por universidades e centros de investigação. Estima-se que muitos destes eventos contaram com uma adesão de participantes superior comparativamente a eventos equivalentes num período pré-pandemia e que se realizaram no formato presencial.
Cândida Manuel revelou que esteve na organização de 27 eventos online diferentes, sendo que 20 desses eventos foram no âmbito de um programa chamado “Ligações & Discussões”. “A nossa ideia foi criar momentos em que as pessoas se pudessem encontrar, falar sobre temas atuais e partilhar experiências, uma vez que estávamos todos enclausurados em casa. Notou-se que, no início, tínhamos muitos participantes, mas mais para o fim – a partir de junho – acho que as pessoas começaram a ficar saturadas porque eram tantos eventos”, partilha.
Com vantagens e desvantagens, muitas delas partilhadas com as dos eventos científicos especializados, Rui Ribeiro esclareceu que “não é, de todo, igual dar/assistir a uma palestra de forma online ou presencial”. “Creio que na modalidade online se perde uma grande parte da informação/conteúdo a transmitir. Como tal, é mais fácil dar uma comunicação efetiva na forma presencial”, frisa.
Cândida Manuel partilha, em parte, da mesma visão, pois o facto de as pessoas não estarem no próprio local, não se ver o ambiente e não se verem umas às outras “constitui uma grande desvantagem do formato”. “Acaba por se perder a interação entre os participantes e os oradores”, afirma. “Mas na verdade, nada se perde sobre a informação que se pretende passar pois o orador aparece no pequeno ecrã do computador, faz a sua apresentação e no final todas as questões podem ser colocadas. Desta forma a conferência quase se torna num evento entre duas pessoas. Tive muitas mensagens dos participantes muito positivas sobre os eventos, os oradores e os temas. Valeu a pena!”
O investigador conta que não gostou que, nos eventos que participou, as questões fossem colocadas através do chat. “Considero esta uma má opção, já que muitas vezes os próprios oradores não compreendem as questões que estão a fazer. Na minha opinião, o melhor será sempre haver uma discussão oral no final de cada palestra/apresentação.” Por outro lado, Cândida Manuel identificou uma vantagem neste formato para as questões: “Muitas vezes, as pessoas se sentem intimidadas em fazer perguntas e notei que algumas, pelo facto de as poderem fazer por escrito, não hesitavam em perguntar”.
Apesar de todas as desvantagens que ainda possam existir para a comunicação científica virtual, “acredito que no futuro vamos continuar a fazer conferências e reuniões online, mesmo depois da COVID-19 desaparecer”, conclui a professora.
Artigo elaborado por Mariana Miranda.