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Sociedade

A Rua Gisberta Salce Júnior – uma homenagem do Porto

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Placa da Rua Gisberta Salce Júnior. Fotografia: Bruna Moreira.

No passado dia 24 de maio, uma das ruas da freguesia do Bonfim, no Porto, passou a chamar-se “Rua Gisberta Salce Júnior”, em homenagem à mulher transgénero que, em 2006, marcou as ruas portuenses, sem saber o final trágico que a esperava. Uma homenagem da Câmara Municipal do Porto, ao fim de quase duas décadas desde o sucedido.

 

Foi às portas do Pride Month, ou “mês do orgulho” que, no passado dia 24 de maio, o arruamento na freguesia do Bonfim entre a Rua das Eirinhas e a Travessa das Eirinhas, no Porto, se tornou oficialmente na Rua Gisberta Salce Júnior. Trata-se de uma homenagem à mulher transgénero de mesmo nome agredida e assassinada por um grupo de 14 adolescentes, a 22 de fevereiro de 2006.

Esta atribuição, 18 anos depois da ocorrência do crime, foi precedida por várias propostas que não haviam encontrado consenso dentro da Comissão da Toponímia, órgão responsável por deliberações que digam respeito a nomes de ruas. Finalmente, em março de 2022, o nome de Gisberta foi escolhido em prol de outros dois em consideração (Palmira de Sousa, antiga carquejeira, e Nuno Teixeira Neves, antigo jornalista do Jornal de Notícias), reunindo sete votos a favor e seis contra. A deliberação e emissão do parecer favorável pela junta de freguesia do Bonfim ocorreram em outubro de 2023. 

Finalmente, a 29 de janeiro de 2024, o executivo da Câmara Municipal do Porto (CMP) levou a discussão e encontrou unanimidade entre todos os partidos na atribuição da placa com o nome de Gisberta. Quanto a este aspeto, Rui Moreira, atual presidente da CMP, denota que “não haveria muitas Câmaras no país que aprovassem isto por unanimidade”, mas que tal decisão “tem o significado de a cidade reconhecer os seus pecados”.

O assassinato de Gisberta é reconhecido como um crime particularmente complexo, tendo a morte da vítima sido antecedida por vários dias de violência física e verbal, que corresponderam a uma violação dos direitos humanos. Deu origem a um processo no qual se destaca, no auge do julgamento, o suicídio do diretor da Escola Augusto César Pires de Lima e da Oficina de São José. Esta instituição, a cargo da Igreja Católica e frequentada pela maior parte dos agressores na altura, foi entretanto encerrada devido a outro tipo de problemas judiciais. 

O homicídio de Gisberta terá estado relacionado não só com o preconceito em relação à identidade de género, mas também com a fragilidade de uma imigrante brasileira em situação de sem abrigo

Gisberta imigrou para Portugal com 20 anos, com o objetivo de escapar a uma vaga de homicídios a transexuais em São Paulo. Aquando do seu homicídio, aos 45 anos, encontrava-se a morar numa barraca num edifício na Avenida Fernão de Magalhães, próxima da rua que no futuro viria a ser batizada com o seu nome, onde foi encontrada morta dentro de um poço. Padecia de um estado avançado da infeção provocada pelo vírus VIH, era toxicodependente e tinha acabado de abandonar o trabalho sexual, outrora uma das suas principais fontes de sustento, como consequência  da decadência física e psicológica provocada pela doença. Nuno Câmara Lima, enfermeiro que acompanhou Gisberta no âmbito de um projeto do Espaço Pessoa, numa entrevista dada em 2016 ao jornal Observador, refere que: “Passou de uma mulher muito bonita, glamorosa e a viver bem, para uma mulher que acabou já com roupas rasgadas, sem maquilhagem, já nem usava tacões, cortou o cabelo quase à rapaz, vestida à homem.”.

No final de 2005, Gisberta começou a ser visitada por três menores (Fernando, Ivo e Flávio), que partilharam com os seus colegas da escola a localização e a história de vida de Gisberta, que lhes tinha sido confiada pela mesma. A isto seguiu-se a reunião de um grupo de 14 crianças e jovens entre os 12 e os 16 anos, para perpetrar o crime. No Acórdão do Tribunal por detrás do processo, lê-se o seguinte: “Enquanto agrediam Gisberta com paus e pontapés, Vítor Santos gritava para lhe baixarem as calças porque «queria ver se era homem ou mulher»”.

Após vários dias de agressões, Gisberta foi atirada ao poço onde veio a ser encontrada, localização revelada por um dos próprios agressores, Flávio. Porém, o relatório da autópsia de Gisberta indicou que a causa do óbito propriamente dito terá sido afogamento e não diretamente as agressões sofridas. Por essa razão, apesar de o crime inicialmente indicado ter sido o homicídio qualificado, ainda que na forma tentada e a título de dolo eventual, posteriormente, a 11 dos agressores foi imputado o crime de ofensas corporais qualificadas e aos restantes o crime de omissão de auxílio. Assim sendo, entre julho e setembro de 2007, decorrido pouco mais de 1 ano desde a tragédia, todos os condenados ficaram em liberdade – muito por ainda serem menores no momento das agressões.

O caso está associado a uma enorme cobertura mediática, além de ter despoletado vários debates e movimentos, dentro dos quais a Marcha do Orgulho do Porto. A proposta de nomear uma rua do Porto foi apresentada à Comissão de Toponímia em abaixo-assinado, tendo sido anteriormente negada duas vezes. Foi ainda proposta pelos vereadores do Partido Socialista da Câmara do Porto, em 2022. 

A memória de Gisberta estará, a partir de agora, para sempre preservada nas ruas da cidade do Porto, “um símbolo de uma cidade que queremos inclusiva”, conforme destaca Ilda Figueiredo, vereadora da Coligação Democrática Unitária na CMP. Citando Rui Moreira,“[p]ara que não se repita”. 

 

Artigo por: Bruna Moreira

Editado por: Ana Pinto e Joana Monteiro