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Artigo de Opinião

O MOVIMENTO OKUPA E A SUA NECESSIDADE NUMA CIDADE MERGULHADA NUMA CRISE IDENTITÁRIA

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A escola básica José Gomes Ferreira, no Porto, encerrou em 2013 por alegada falta de alunos, tendo o edifício ficado fechado desde então. Em outubro deste ano (2017), um grupo de ativistas decidiu acabar com a sua vida silenciosa e torna-lo um espaço “restituído à coletividade, libertado da inutilização e do abandono”, “onde qualquer pessoa possa realizar os seus projetos e ideias de maneira livre” e “um local de encontro para quem ainda insiste em querer viver a cidade e as suas ruas”. Encontraram um espaço vazio, “de portas abertas, com janelas e lavatórios partidos, lixo por todo o lado, alarmes arrancados, pó de extintor espalhado pelo chão, silvas no campo de jogos, e uma mata que assusta a vizinhança”. Rapidamente trataram de a limpar e convidar todos os que quisessem entrar e ajudar com o corpo, com palavras amigas ou com utensílios diversos. “Bem-vindos ao nosso bairro!” e “Pensávamos que nunca mais vinham!” são frases de um vizinho, que representam a boa receção que a ocupação recebeu da população da Travessa dos Campos, perto da estação de metro de Fernão Magalhães, onde se situa a antiga escola. No segundo dia da nova vida da travessa, realizou-se uma assembleia na qual se discutiu o porquê da ocupação, a importância da relação com a comunidade local, os efeitos da turistificação e as formas de combatê-la e a pertinência de ações sobre o problema de habitação na cidade, e se planeou levar para a frente projetos como uma biblioteca comunitária ou ensaios de uma orquestra de músicas de intervenção. Entretanto, estava já em processo a criação de uma cozinha, onde se preparou o jantar para toda a comunidade amiga.

Infelizmente, nem todos partilham da mesma noção de direito à propriedade, e, poucos dias depois, 21 pessoas de 3 nacionalidades diferentes foram brutalmente expulsas do edifício e levadas para a esquadra pela Polícia Municipal e pela PSP, tendo esta intervenção sido justificada pela Câmara Municipal do Porto por “ocupação ilícita de espaço vedado ao público”.

No blogue da Travessa, onde podemos ler as motivações que levaram à ocupação (incluindo uma forte crítica à “limpeza social” que está a “devorar” a cidade do Porto e à “fábrica de turismo” em que esta se tornou), os ativistas garantem que “não será um despejo a apagar” o seu “sonho de liberdade” porque “as ideias não se despejam” e “a Travessa não era só um espaço físico. É muito mais: são ideias, é luta”.

Mas a escola voltou a adormecer, vazia, devolvida à inércia e, claro, fechada de todas as maneiras para que ninguém para além dos seus donos voltasse a meter lá os pés. Porque só aos donos pertence. Porquê? Porque eles pagaram. Não interessa que se tenha criado uma atmosfera de solidariedade e alegria, benéfica para a comunidade e muito valorizada por ela. Não têm dinheiro, não têm direito. E é isto que o movimento okupa (com k pela sua conotação política distinta das ocupações dos anos 70, em que a falta de habitação gerou uma motivação popular e era quase legal ocupar casas devolutas) representa: um profundo questionamento sobre a natureza de propriedade.

Numa casa ocupada em Lisboa pela Assembleia de Ocupação de Lisboa (AOLX), podemos ler “A CIDADE É DE QUEM A OCUPA” escrito em letras bem grandes. Será? Para mim faz todo o sentido que assim seja.

Afinal a cidade é o lar de uma comunidade e uma comunidade é composta pelas suas pessoas. É deste conceito de comunidade, das relações entre os seus elementos e do que juntos constroem e partilham, que nasce a identidade de uma cidade. Esta identidade coletiva é o que a distingue uma cidade de outra qualquer, porque uma identidade “é um esforço constante de unificação, de integração e harmonização e, simultaneamente, de diferenciação, de afirmação e singularização.” A identidade é a alma da cidade, a sua essência, aquilo que faz que ela seja o que é. E esta essência é fruto de quem nela existe ou existiu, de quem a habita ou habitou de quem a vive ou viveu. Assim, o movimento okupa surge como uma forma da comunidade se autodeterminar e afirmar a sua identidade porque “resistência e identidade coletiva são dois fenómenos indissociáveis, com as manifestações de uma, acarretando a afirmação da outra” e cidade pertence a quem pertence a ela.

É urgente agir. Estamos cada um para seu lado, a viver na sua bolha, e esquecemo-nos de que o todo antecede a parte porque uma mão fora de um corpo não é mais uma mão, já que não pode cumprir a sua função de mão. Somos elementos da comunidade, como a mão é do corpo, e é importante que não nos esqueçamos da nossa natureza social: precisamos uns dos outros para sobreviver, e é esse o objetivo da comunidade. É essencial que não nos desliguemos disso e não deixemos a identidade coletiva que nos define a flutuar ou seremos consumidos pelo vazio que nos assola o peito todos os dias. E a cidade mergulha nesta crise identitária, e todos os dias é arrancado mais um pedaço do seu coração com cada bairro que é escorraçado para que se contruam hotéis, e agrava-se a sua descaracterização.

É necessária a nossa autoafirmação. Querem-nos limpos, arranjados, endinheirados e conformados para que façamos boa figura na fotografia do postal turístico e para que a cidade-montra se continue a vender a si própria. Pois bem, somos sujos, desleixados, pobres e revoltados. E a nossa essência vale mais do que qualquer negócio.

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