Crónica
O PASSADO E O FUTURO – PARTE 1
A história do nascimento do PPD conta-se com relativa facilidade: um conjunto de membros da oposição ao Estado Novo, pertencentes à Ala Liberal e liderados por Francisco Sá Carneiro, aproveita as possibilidades da revolução de abril para tentar ocupar um espaço de moderação, inspirados no modelo das democracias ocidentais. Esse conjunto de burgueses bem-intencionados possuía mais vontade de ação e prestígio social do que cultura política e densidade intelectual. Artur Santos Silva, que viria a tornar-se figura maior da elite empresarial da democracia, usa a sua intimidade com Sá Carneiro para lhe sugerir que aproveite uma série de jovens académicos da intelectualidade de Coimbra que poderiam legitimar e desenvolver a ideologia do partido. São assim recrutados Carlos Mota Pinto, Jorge Figueiredo Dias e Barbosa de Melo, todos da Faculdade de Direito. Esse grupo de juristas aceita a proposta de Sá Carneiro e Santos Silva, sob a condição de que as linhas programáticas, a elaborar por Francisco Pinto Balsemão, enquadrassem o partido no centro-esquerda e na social-democracia (muito os influenciou, na sua carreira académica, o contacto com a cultura germânica e personagens como Willy Brandt e Helmut Schmidt, do SPD). Como seria previsível, as linhas de Balsemão e Sá Carneiro revelaram-se demasiado “liberalizantes” para o grupo de Coimbra, que tratou de as reescrever de forma mais apropriada ao zeitgeist nacional.
Da fundação do PPD se percebe toda a vida do PSD: um eterno confronto entre dois grandes grupos, liberais e sociais-democratas, nos vários sentidos que ambos os termos foram colhendo desde 1974. Nas últimas semanas, ambas as fações trouxeram a terreiro os seus pontas-de-lança intelectuais: ao Expresso, o Professor Doutor Miguel Morgado defendeu para o PSD o destino de casa-mãe de uma “federação das direitas”, numa espécie de geringonça simétrica; à TSF e ao DN, o Professor Doutor Paulo Mota Pinto (filho de Carlos) defendeu, por entre insultos mais ou menos velados a Morgado e companhia, que toda a história do PSD o colocava como um “partido de centro-esquerda, centro” e um tampão de reformistas contra uma direita reacionária e imobilista. Ambos têm razão e ambos estão profundamente errados.
Esse exercício de análise histórica como justificação do futuro, por divertido que seja, é infrutuoso. O problema do PSD não está na ideologia, que nunca teve e melhor fará se não tiver, mas nos militantes que deixou de ter. Mais importante do que o trabalho de Mota Pinto (pai) nas linhas programáticas do PREC foi o trabalho de terreno que fez no centro do país, tornando militantes uma série de personagens com prestígio local (os homens bons do tempo), que por sua vez recrutaram familiares, conhecidos e vizinhos, influenciados pela sua notoriedade. Sá Carneiro, um homem de ação com um certo desprezo pela política teórica, foi, em certa medida, o representante mais próximo dessa mole de pragmáticos que permitiu ao PPD implantar-se pelo país e ter um surpreendente resultado eleitoral logo em 1975.
A verdade é que, em 2018, homens como Sá Carneiro estão a desaparecer e o mundo já não produz novos. A sociedade atomizou e individualizou-se, os portugueses já não vivem em aldeias e pequenas cidades onde todos se conhecem e relacionam, e essas figuras de auctoritas local já não são substituídas pelos filhos ou por atrevidos arrivistas. Nas grandes cidades, as presidências de Câmara que o partido conquistou no ano passado (cargo ideal para uma figura de pater familias) contam-se pelos dedos de uma mão. Os pequenos industriais, os advogados e médicos com escritórios e consultórios em nome próprio e os pequenos burgueses com ambição pessoal e desejosos de uma reforma do país já não vão existindo. O problema do PSD em 2019 não é ser demasiado de direita ou de esquerda, mas perceber quem pode ser convencido por um modelo de sociedade em que o Estado, não sendo um incómodo, também não falha com os mais fracos, e voltar a chamar essas pessoas para si. O eleitor-modelo foi sempre mais definido pela sua personalidade e posição social do que por qualquer adesão ideológica.
Enquanto não perceberem isso, os mais inteligentes egos do país podem provocar-se até serem eleitos para coisa nenhuma.
P.S.: Num próximo texto abordarei o tema desses eleitores naturais por descobrir.
Artigo por João Diogo Barbosa. Revisto por Adriana Peixoto.