Devaneios
EU TENHO MIL AMORES
Ele pegou no bisturi e perfurou-a, ali bem no ponto onde era para cortar. Não sei dizer ao milímetro onde foi porque, embora seja um daqueles narradores omniscientes, não sou um narrador absolutamente insano que se atreve a entrar num bloco operatório em plena cirurgia de risco.
Estava tudo dentro da normalidade. As batas verdes ensanguentadas; o pi-pi-pi da maquineta numa aceleração qb (segundo os conhecimentos adquiridos nas quinze temporadas de Anatomia de Grey); e ele, em tempos espaçados, a pedir as compressas, a tesoura e a pinça.
Até que, no momento em que lhe chegaria ao coração, ficou indeciso. Muito indeciso. Surpreendentemente indeciso. Pediu que lhe retirassem as luvas com urgência, precisava de esfregar os olhos. Confirmava-se. Estavam ali, naquele peito, uns mil corações. Uns mais pequenos que outros, uns mais vermelhos que outros, uns mais vitais que outros. Mas eram uns mil.
Primeiro, entrou em pânico. De seguida, quase a atingir o colapso mental, decidiu raciocinar. (Depois do sistema de ensino lhe ter exigido uns vinte anos de aprendizagem marrada, talvez, com grande esforço, fosse capaz de raciocinar). Ocorreu-lhe que a nossa criança eterna merecia um coração próprio. E que a pessoa que somos, a que queremos ser, e a que os outros fazem de nós, são tão diferentes e frenéticas que um coração apenas não aguenta a genica. Interrogou-se se, de cada vez que se sentava no metro ou no jardim a observar a gente, a inventar-lhe uma vida e a apoderar-se dela, não lhe saltaria, também, do nada, um novo coração. Talvez até a sua atração por ruivas e o amor pela sua mulher bem morena não coubessem no mesmo. Raciocinou. Talvez os mil corações começassem a fazer sentido. Vai na volta – deu por si a pensar – a coitada estendida na maca era atriz, amante de arte ou qualquer ganha-pão semelhante e, só por si, transportava e transbordava pessoazinhas e almas soltas a toda a hora.
Pensou em dedicar-se a escrever uma tese, com toda a linguagem cientificamente engravatada, a explicar “o caso dos mil corações”, e respetivas causas, consequências, sintomas e despistes. No fundo, o caso generalizava-se a qualquer ser (raro) que não vivesse, tonto, em volta do seu umbigo.
“Chegue-me a ficha da doente, Senhora Enfermeira.” Chamava-se Natacha e, afinal, era economista. O tal pi-pi-pi começou a berrar descontrolado e, em segundos, deixou de aparecer ondulação no ecrã. (Agora entende-se a vitalidade dos altos e baixos da vida). Ele parou. A sua voz de consciência fez um minuto de silêncio por todos os artistas cujos corações nunca vamos conhecer, porque decidiram dedicar-se a um trabalho estável. Ele arrepiou-se. Saiu da sala, do hospital, da cidade. E foi dedicar-se à poesia.
Artigo de Inês Sincero. Revisto por Adriana Peixoto.