Crítica
LA CIÉNAGA, UM FILME CONTRA-CINEMA
La Ciénaga é a primeira longa metragem de Lucrecia Martel. O filme é uma comédia negra que relata o verão de Tali (Mercedes Morán) e de Mecha (Graciela Borges), é um enredo que se desenrola num conjunto de episódios. Lucrécia não está interessada em contar uma história, a narrativa não cumpre as regras dos “livros”, não tem uma noção de início, meio e fim – é um filme episódico. As imagens criam uma gramática própria forte e coesa. Os planos aproximados são uma constante, os movimentos de câmara são escassos e uso da música nunca é fortuito. As cenas nunca são acompanhadas por uma música acrescentada em pós-produção – os elementos musicais são próprios à ação que decorre. É um cinema sensorial e imersivo que privilegia o som e retira a hegemonia absoluta ao sentido da visão.
As obras de Franz Kafka são caracterizadas pela primeira frase. Como se fosse uma pequena apresentação, o autor resume o livro numa dúzia de palavras. Tome-se como exemplo a frase “inaugural” d´A Metamorfose e d’O Processo: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregory Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”, “Alguém deve ter difamado Joseph K., pois que numa linda manhã foi preso sem ter cometido qualquer crime”. O enredo desenvolver-se-á em torno da premissa inicial, Kafka é como um escultor que levanta o véu antes da escultura estar concluída. O leitor sabe imediatamente o que esperar.
Lucrecia Martel recorre a uma estratégia semelhante; os primeiros planos retratam os temas que o filme irá abordar. A imagem inicial mostra uma multidão deitada em espreguiçadeiras, o clima é adverso, a qualquer momento a chuva ameaça cair sobre os corpos seminus; a água da piscina é peçonhenta, folhas castanhas flutuam sobre um fundo esverdeado. A cinematografia dá conta da situação decadente da família, advinham-se os resquícios de uma fortuna antiga. A indiferença com que o homem vê a esposa cair e cortar-se mostra imediatamente a relação podre que os casais de anfitriões mantém. Lucrecia Martel vai intercalando as imagens da piscina com plano de um boi preso na lama; as duas linhas narrativas estão inteiramente ligadas – é difícil crer que tenham sido colocadas lado a lado por acaso. Em termos gráficos, há uma forte semelhança entre a água da piscina e a do pântano. A forma como o animal aceita a morte relaciona-se, em larga medida, com a maneira com que as personagens são espectadoras indiferentes da própria decadência. O boi e a família movem-se num terreno movediço; ou aceitam o destino ou tentam fugir enterrando-se cada vez mais na lama.
As primeiras ações das personagens são elucidativas do mapa de relações familiares. Quando a empregada (Andrea López) tenta estancar o sangue dos ferimentos de Mecha, a protagonista acusa-a de ter roubado as toalhas. Com indiferença perante os cortes que lhe cobrem o peito, a personagem diz: “Então era para aí que as toalhas tinham ido”. Antes de ir para hospital, Mercha aguenta as dores por mais algum tempo para que lhe possam vestir o “vestido às flores” – está mais preocupada com o que traja e com o que a empregada faz do que com a quantidade de sangue que perde.
A primeira ação que vemos de Momi (Sofia Bertolotto) é a tentativa de se aninhar na cama com a empregada, Isabel. Quando a outra rapariga se mostra pouco reticente a esta investida, Momi fica lúgubre e reza. Ao longo da história vários são os momentos em que se percebe a obsessão que Momi sente pela empregada. Numa primeira instância os planos mostram a menina a tomar banho e a espreitar pela rede da janela, observa Isabel a afastar-se com o namorado. Mais tarde, num dos mais geniais usos do espaço off de que me lembro, vemos a mesma imagem; o plano mostra-nos, por entre a malha quadrangular da rede, Isabel a abandonar a casa e a juntar-se ao namorado. O plano não mostra Nomi, mas a presença da menina é sentida através da repetição do enquadramento e do barulho da água do chuveiro. Quando o plano termina, o espectador vê Nomi a chorar de rosto voltado para a parede – é a confirmação desnecessária da presença da personagem.
Uma das críticas mais presentes aos blockbusters de hollywood é a maneira vazia como, de uma forma geral, desenvolvem as personagens infantis. Muitas das vezes a presença de uma criança serve unicamente para ajudar a dar complexidade a um protagonista, a criança é usada para criar empatia entre o espectador e a personagem. O elemento “filho” auxilia no processo de enfatização estabelecido entre plateia e protagonista – é um meio para atingir um fim. São, quase sempre, personagens planas. Lucrecia Martel não comete o mesmo erro e faz uso das personagens que tem ao dispor. Um dos melhores exemplos é a maneira como a personalidade de Luciano (Sebastián Montagna) é trabalhado e construído. O menino fica aterrorizado com a história da “rata africana”, está constantemente a olhar para o muro do quintal e a tentar medir o cão do vizinho pelo som dos latidos. Chega a perguntar à mãe se o animal seria capaz de passar a parede. No final do filme, levado pela curiosidade, sobe o escadote para espreitar para o outro lado. Num golpe do destino, a escada parte e o menino cai desamparado no chão. A curiosidade, o medo e a imaginação conduziram-no ao topo do escadote e foram, em última instância, a causa do desastre. A representação do cão é mais uma mostra do cuidado com que Martel trata o detalhe. O animal tem uma presença invisível, é marcada pelos latidos e grunhidos. A “besta” nunca aparece em filme. A construção da “personagem” do cão é uma mostra de dois traços característicos do cinema de Martel: o tratamento meticuloso do espaço off, a importância e independência do som face à imagem.
Os instantes finais funcionam quase como os inicias, são um resumo da narrativa. Vários dos elementos são recuperados no desenrolar da cena, o arrastar das cadeiras remete para o ruído da cena da piscina, o som de tiros marca a presença das caçadas nos pântanos, a solidão de Mori é o confirmar da partida de Isabel. Numa nota final de impotência, Mori diz que visitou o local onde tinha surgido a Nossa Senhora de Fátima – “Fui onde aparece a virgem, não vi nada”. Não há milagres nem salvação, a família está destinada à desfortuna e à rutura.
O cinema de Martel compreende-se à luz dos acontecimentos, as “fórmulas” de hollywood entraram em falência, as técnicas narrativas foram usadas até à overdose. O cinema perdeu a capacidade de levar o espectador a pensar, apresenta-se como um modelo acabado que leva a plateia à passividade e à estagnação. Os filmes de Martel rompem com a corrente dos filmes comerciais de hollywood, são obras onde estão presentes o minimalismo e a austeridade associados à vanguarda e ao contra-cinema. O cinema de Martel tenta distanciar o espectador das personagens e leva-o a ter uma opinião dos acontecimentos diferente da do protagonista. São filmes que apelam à capacidade crítica da plateia.
Artigo de Rui Correia. Revisto por Adriana Peixoto.