Artigo de Opinião

A PRIMEIRA TENTAÇÃO DE CRISTO E A ENÉSIMA PROVAÇÃO DOS CRISTÃOS – PARTE II

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Apesar da maior consternação face ao tartufismo cristão dos neopentecostais, foi outro pastiche
esculpido de credo ruminado pela sociedade brasileira que empreendeu o atentado terrorista contra
o Porta dos Fundos: os ultraconservadores católicos da Frente Integralista Brasileira (FIB),
movimento de extrema-direita que na terceira década do século passado tentou criar a versão
brasileira do fascismo italiano. Um dos envolvidos, Eduardo Fauzi, foragido na Rússia, era não só
membro da FIB como do PSL, partido que alavancou a candidatura de Bolsonaro à presidência e ao
qual este esteve ligado até forjar uma balbúrdia interna para desvincular-se e fundar a sua própria
sigla – que ao que tudo indica será mais bizarra e ainda mais pseudocristã. No currículo cristão de
Fauzi constam mais de vinte passagens pela polícia, quase sempre por agressão e lesão corporal. Os
vídeos gravados por ele após o atentado, em que tergiversa sua irascível chanchada, elucidam o
fanatismo patológico que domina essa trupe. Se foi tentativa de marketing para ressuscitar o
integralismo ou pura psicopatia, não sei, o certo é que o ataque tem sido não só justificado, mas
aplaudido por uma significativa parcela de um país que passou a tornar banal e quotidiana a
provação de códigos civilizacionais elementares. No rol de doidivanas teocráticos maravilhados
com o lampejo de cruzada há até congressistas.

O atentado, que é um inequívoco ato terrorista, abre um precedente gravíssimo que pode estimular o
recrudescimento do fundamentalismo cristão no Brasil, fazendo-o evoluir para atos corriqueiros de
violência física (embora para religiões de matriz africana sofrer ataques em seus terreiros não seja
novidade alguma), e o silêncio (leia-se conivência) do atual poder executivo, nomeadamente do
Ministro da Justiça, o farsante Sérgio Moro, não me admira e não me escandaliza minimamente.
Porque do governo Bolsonaro não espero nem nunca esperarei absolutamente nada que não a
miséria moral e a barbárie. É do executivo que emerge o esforço de guerra cultural (e santa) à guisa
de setores ressentidos com os avanços sociais que nas últimas décadas expandiram direitos civis e
lançaram as bases de um modelo de Estado Social deveras tímido se comparado aos europeus, mas
que só por existir reflete o espantalho do “socialismo” nas mentes que normalizaram o delírio
conspiracionista. A inflamada sanha teocrática é corolário desse projeto fascistóide e não custa nada
lembrar que em Portugal os únicos a celebrar o triunfo eleitoral do bolsonarismo e a tentar nele
galgar politicamente foram os salazarentos do PNR e mais alguns grupelhos neofascistas, aos quais
se juntou um nada original aspirante a Bozo lusitano e seus séquitos chegófilos.
“Coincidentemente”, todos eles são ativos elementos políticos do fundamentalismo cristão e
islamofóbicos viscerais.

Cabe aqui referir algo esclarecedor: o fundamentalismo religioso que controla pela teocracia quase
todos os países de predominância muçulmana, sempre utilizado não só como justificativa
islamofóbica, essencialmente anti-árabe, mas como argumento contra os críticos do cristianismo
quando estes de alguma forma se manifestam, é na verdade profundo objeto de desejo de uma
grande parte dos cristãos brasileiros. O vídeo do Porta dos Fundos que apresentou um Jesus boa
pessoa, humilde, que prefere fazer malabares e maracatu em vez de ter super poderes divinos, e que
por acaso é gay, tendo conhecido Orlando numa viagem de quarenta dias pelo deserto, também
escancarou, involuntariamente, a existência desse desejo, até então (mal) camuflado. Agora
sabemos que para milhões de cristãos a violência sectária e teocrática do fundamentalismo islâmico
não se condena pelo que faz, mas por quem o faz. O problema é agir em nome de Maomé e não de
Cristo. Quando desafiam o Porta dos Fundos a satirizar a crença muçulmana, não o fazem por
chulice retórica, mas como um desejo por violência, para que os “selvagens” do oriente façam
aquilo que eles próprios, ocidentais civilizados, adorariam fazer. Parte desse desejo foi liberto e
satisfeito com o atentado à sede do grupo humorístico. Porque, como bem denuncia Noam
Chomsky já há muitos anos, terrorismo só é terrorismo quando é “deles” contra “nós”. A barbárie
que praticamos é sempre justificável.

Talvez a indignação de grande parte da cristandade brasileira esteja no facto de o Jesus da peça
humorística não incorporar o tertufismo que nela reluz, ululante. As reações sugerem que a
cristandade se supõe dotada de graça para ensinar a Cristo o que é ser cristão. O Meteoro Brasil
(canal brasileiro no Youtube) perguntou em um vídeo sobre a peça humorística: “se Cristo
arranjasse um namorado, você deixaria de ser cristão?”. Ainda que o Cristo do Porta dos Fundos
seja apenas um elemento ficcional de dialética entre Novo e Velho Testamento (este representado
por um Deus problemático, intempestivo, rancoroso), ele não é menos aceitável ou menos fidedigno
que o Cristo de doutrinas predominantes, especialmente o Cristo dos grupos que passam a vida
propagando discursos de ódio. Porque, para estes, fazer sátira apresentando um Jesus gay com
apóstolos fanfarrões é inadmissível, merece um milhão de assinaturas pela sua censura e bombas
em sua sede, mas fundar igrejas (leia-se empresas) e construir impérios poderosos praticando
estelionato contra fiéis miseráveis e desesperados é o ápice do cristianismo.

Mas melhora:

Uma multidão de cristãos brasileiros jurou – por Deus? – o cancelamento de assinaturas da Netflix.
Eu acredito mais facilmente na existência divina e no terraplanismo do que no cumprimento dessa
promessa. Ninguém abre mão das suas séries favoritas por causa de uma religião que finge seguir.

Por fim, a questão da sacro-blindagem ideológica. Diz-se que não se pode criticar, escarnecer,
satirizar ou ridicularizar a crença alheia. Ora, considerando que as crenças se fundamentam em uma
idealização do mundo a partir de valores religiosos, podemos seguramente dizer que o cristianismo
(ou o islamismo, o judaísmo, o kardecismo, o budismo, etc…) é uma ideologia. Ainda que seja
diferente das ideologias políticas, não deixa de ser uma ideologia. Se o cristianismo (e os outros
ismos religiosos) não pode ser alvo de críticas, escárnios, sátiras e ridicularizações, qualquer
indivíduo adepto de uma ideologia política poderá reclamar o mesmo. Eu, como socialista
anarquista, poderei reivindicar a sacro-blindagem da minha ideologia e pregar uma resposta
afincada, agressiva e mesmo violenta contra quem de alguma forma se atrever a atacar o meu ideal,
evocando o seu caráter sagrado para justificar a minha reação.

Há ideologia em tudo: na filosofia, nas artes, na própria ciência, no desporto. As ideologias
religiosas não devem ser mais protegidas do que quaisquer outras e só são sagradas para quem nelas
crê e/ou segue, estando invariavelmente expostas ao cético e ao refratário. Com a exceção que
deveria ser óbvia para as ideologias assassinas, genocidas e fratricidas, como o nazismo, todas
devem gozar do mesmo ambiente de abertura para a sua expressão e prática. Mas o mundo em que
ideologias estão acima de críticas, mesmo as mais ridicularizantes, não é definitivamente um mundo
que valha a pena idealizar. O próprio cristianismo, durante muitos séculos, deu provas mais que
suficientes do que é capaz em sociedades teocráticas e obscurantistas.

 

[Ler: Parte I]

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